Aldeia Nagô
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A chave de ouro para a biografia de Zé Dirceu. Por Alex Solnik

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura

Artigo publicado originalmente no Brasil 247

Todos nós tínhamos inveja de Zé Dirceu, por motivos diferentes, em 1968.

Eu, dezoito para dezenove anos, estava na dúvida entre ser cineasta ou economista. Passei no vestibular para a Escola de Comunicações e para a Faculdade de Economia. A primeira opção era para continuar próximo do meu melhor amigo do colegial; a segunda, para agradar meus pais.

De manhã eu ia ao prédio da Rua Dr. Villanova, na região da Consolação, cursar Economia, e, à tarde, ao “campus” da Cidade Universitária, no bairro do Butantã, aulas de Cinema.

Logo nos primeiros dias percebi que não tinha a menor vocação para ouvir aqueles professores e ler suas anotações no quadro-negro. Eu não entendia a língua deles. Fiquei com bode da Economia.

Para não morrer de tédio, passei a trocar as aulas por jogos de ping-pong no Centro Acadêmico.

Meu parceiro habitual era um cara chamado Mário Prata, que também não sabia o que estava fazendo lá e na época ainda não era o MÁRIO PRATA e sim o sobrinho do genial Campos de Carvalho, de quem eu e ele éramos leitores (“A lua vem da Ásia”, “O púcaro búlgaro”, etc.).

Entre uma partida de ping-pong e outra, a gente ia relaxar na “Quitanda”, do outro lado da rua, dando início a nosso campeonato particular de batidas de maracujá.

Depois juntou-se a nós outro dissidente das aulas, chamado Cláudio Pucci, com quem criamos um musical para o show dos calouros que batizamos de “Kalfiloficus”. (Nenhum de nós lembra de quem foi a ideia que na época achamos genial – com licença para repetir essa palavra, que era a palavra do momento, tudo era “genial”.)

Acho que o que contei até agora mostra com clareza que a gente estava em outra quando, numa visita ao Bar do Zé, na esquina da nossa rua com a Maria Antônia, deparei com um movimento estranho, uma agitação maior que a habitual, rostos crispados indo de lá para cá, discussões em altos brados.

Nem entramos no boteco, percorremos mais alguns metros até o prédio da Faculdade de Filosofia da USP. Logo notamos cenas inusitadas, nada parecidas com dias de aula ou de feriado. Havia colchões no chão, cartazes nas paredes com palavras de ordem, rodinhas de cabeludos e meninas de mini-saia por todos os cantos, livros e cadernos nos braços, reunidos em volta de um orador, que fazia informes e distribuía ordens.

Todos pareciam muito sérios e compenetrados, ao contrário de nós três. O que mais me atraía era aquela algaravia, e não exatamente o conteúdo dos discursos, e também meu periscópio particular percorria o espaço em vista de uma garota bonitinha, simpática e sem acompanhante.

Aquilo parecia uma usina de ideias e de soluções para um mundo novo, nada menos que isso.

Aos poucos nos demos conta que a Filosofia tinha sido ocupada pelos alunos, tal como sucedeu na França um mês atrás, em maio. Lá como cá, os estudantes estavam convencidos que tinham a história na mão e seriam a vanguarda da mais bela das utopias. Professores e diretores, fora!

Ocuparam para uns ensinar aos outros, para se organizarem e conquistar adeptos, para mostrarem que são capazes de se autogerir e formar o embrião de uma nova sociedade. E assim derrubar a ditadura militar.

Havia vários setores. Um deles era o de arrecadação de fundos para custear a ocupação e para financiar o Congresso da UNE, proscrita desde o golpe militar de 64, marcado para o fim do ano e clandestino, lógico.

Não sei se foi ideia dele, mas logo foi implantado um “pedágio”, uma barricada, na esquina da Maria Antônia com a Rua da Consolação, onde todos os automóveis que vinham da Consolação e da Caio Prado eram obrigados a parar.

O chefe do pedágio era um cara magro, cabelos pretos caindo sobre os ombros que de cima de um caixote dava as ordens num megafone com tal ênfase que ninguém ousava recusar.

Além de sua firmeza, de sua independência, de sua clareza ideológica, de seu discurso de gente grande, de sua coragem e ousadia, o cara ainda por cima era bonito, não precisava cantar as meninas, elas é que o cantavam. Ele só tinha o trabalho de escolher. Vocês sabem de quem falo.

A ocupação era ao mesmo tempo um centro de estudos e um santuário do amor livre, fazer sexo era revolucionário, “faça amor, não faça a guerra”. Ou faça ambos. Amor e revolução estavam no mesmo pacote.

Ninguém ali queria saber de voltar para a casa dos pais. Era a época do “she’s leaving home”, do “hoje eu vou sair de casa, vou levar a mala cheia de ilusão”.

No dia 1 de outubro, quarto mês da ocupação, um ovo podre estoura na cabeça de um estudante da Filosofia que está no pedágio. O agressor é um estudante do Mackenzie, que fica em frente à Filosofia. O antro do famigerado e autodenominado CCC-Comando de Caça aos Comunistas. Era a faísca que faltava para a grande explosão.

Os combates começaram na rua, corpo-a-corpo, com paus e pedras e tudo que estivesse à mão. Depois, cada grupo se entrincheirou no seu QG, na sua faculdade, de onde partiam rojões em direção ao adversário.

Até que, no segundo dia do conflito, ouviram-se tiros vindos do Mackenzie. E um corpo manchou de sangue a calçada da Maria Antônia.

Claro, a turma da Filosofia também tinha armas. Um revólver foi apreendido com Maçã Dourada, uma bela morena do DOPS que se infiltrou no movimento e virou namorada de Zé Dirceu, até ser desmascarada por ele mesmo.

A turma da Filosofia apropriou-se do corpo, desfilou com ele nos ombros pela Rua Xavier de Toledo, Praça Ramos de Azevedo, Avenida São João, aos gritos de abaixo a ditadura, e enquanto isso a turma do CCC aproveitou para depredar e incendiar o prédio da Filosofia, esvaziado, estavam todos na passeata tétrica e trágica.

A polícia foi atrás da passeata, não do CCC, prendeu meio mundo. Zé Dirceu conseguiu fugir.

Eu virei jornalista alguns anos depois; Mário Prata estreou sua primeira peça, “O cordão umbilical”, Cláudio Pucci entrou no Teatro de Arena, como ator e dramaturgo.

Zé Dirceu não mudou. Um mês depois da queda da Maria Antônia foi uma das estrelas do Congresso da UNE, em Ibiúna, no qual foi preso, depois partiu para o exílio, em Cuba, na troca de 15 presos políticos pelo embaixador americano Charles Elbrick, treinou guerrilha, voltou com nova identidade, fez cirurgia plástica, até realizar seu maior feito, co-fundou o Partido dos Trabalhadores.

Lula entrou com a popularidade; ele, com a estratégia. Lula deu linha e agulha, ele costurou.

Lula já é presidente da República pela terceira vez. Ele poderia ter sido, mas não será mais.

Mas ainda pode ser o próximo presidente do PT.

Seria uma chave de ouro para a sua biografia.

Alex Solnik é jornalista. Já atuou em publicações como Jornal da Tarde, Istoé, Senhor, Careta, Interview e Manchete. É autor de treze livros, dentre os quais “Porque não deu certo”, “O Cofre do Adhemar”, “A guerra do apagão” e “O domador de sonhos”

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