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A democracia relativa de Lula (enquanto Paris queima). Por Miguel do Rosário

7 - 9 minutos de leituraModo Leitura
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Os democratas deste país precisam pensar democracia não apenas como um conceito relativo, mas como uma ferramenta útil para transformar efetivamente a realidade

Uma entrevista recente do presidente Lula a uma rádio gaúcha proporcionou um interessante debate.

Respondendo a uma pergunta se considerava a Venezuela uma democracia, o presidente respondeu que este era um conceito “relativo”.

A expressão, como era de se esperar, acendeu uma intensa polêmica sobre a suposta relatividade dos regimes democráticos.

Em editorial de título inspirado, “A teoria da relatividade de Lula”, onde o presidente é chamado de “Einstein petista”, o Estadão parece ter encontrado uma resposta satisfatória: “a democracia é o que é – sem relativismos”.

Com uma resposta dessa nenhum professor de ciência política deve ter contado. E provavelmente nem o ChatGPT 5.0, cuja inteligência deverá ser muito superior à da versão mais avançada atual, o 4.0, será capaz de formulação tão brilhante e concisa.

Ironias à parte, o que está em jogo aqui, sejamos francos, não é o conceito de democracia, que evidentemente é relativo, como qualquer conceito político aberto. Ademais, Lula não estava lá na condição de um acadêmico especializado em “teoria de democracia”, e sim na de um chefe de Estado instado a cair numa pegadinha sobre o país vizinho. E que não caiu, porque Lula é macaco velho nessas coisas.

Lula quer fazer negócios com Venezuela, China, Arábia Saudita, Emirados Árabes, e com todos os países que usualmente não são considerados democracias (com ou sem razão) pela mídia ocidental, e para isso será necessário a construção de amplas relações diplomáticas e políticas. Não cabe a Lula se arvorar o papel de juiz político do mundo.

O debate não poderia ser mais vazio, além de empolgar a um número insignificante de pessoas. Mas ofereceu oportunidade para assistirmos algumas carteiradas acadêmicas, e espetáculos de bravura política por críticas a uma liderança popular.

O tema Venezuela, a propósito, não é tratado com seriedade pela mídia brasileira. Pra começar, esse é o tipo de assunto para o qual a mídia jamais aplicará as suas regras tão queridas de “ouvir o outro lado”. Não, não neste caso.

Em se tratando de qualquer tema geopoliticamente sensível, a mídia ocidental em peso parece agir como um bloco único, coeso, monolítico, e seus representantes no Brasil não fogem à regra.

Não que o debate sobre democracia não seja importante. Claro que é! Mas o que testemunhamos, no caso da declaração de Lula, não é um debate sério.

Um professor chegou a citar Robert Dahl, famoso teórico de democracia dos EUA, para refutar o que disse Lula. Chega a ser engraçado. Em seus livros, Dahl tem diagramas que mostram o quanto o país é democrático ou não, sendo que a democracia, para ele, é um paradigma impossível de atingir. O que existe, na realidade, são poliarquias, que seriam os regimes mais ou menos próximos de um ideal democrático. Mas esse é um debate acadêmico, aberto a críticas, pois seria igualmente ridículo converter as teses de Dahl em fórmulas sagradas sob as quais devemos nos ajoelhar. O próprio Dahl se recusa a fazer julgamentos peremptórios sobre o caminho correto que cada país deve perseguir, tampouco afirma que o trajeto das democracias ricas é o único possível ou desejável. Não, cada país sabe onde o calo aperta. Sem contar que as democracias ricas ajudariam muito a vender globalmente o conceito de democracia se deixassem de interferir violentamente no governo dos outros, seja através de sanções econômicas, seja através de articulações de golpes de Estado e mudanças de regime. Defender a democracia em editoriais do New York Times ao mesmo tempo em que apoia a substituição de regimes democráticos por ditaduras não me parece um bom exemplo a ser seguido, e no entanto é exatamente isso que a elite política norte-americana vem fazendo há mais de cem anos.

Enquanto isso, a França “queima”…

Ou pelo menos é o que vemos na televisão, nos jornais e, sobretudo, nas redes sociais. Sim, os distúrbios na França são sérios. Houve lojas saqueadas, incêndios em prédios públicos, carros queimados. O rastilho de pólvora foi aceso, como se sabe, pela morte de Nahel Merzouk, um jovem de 17 anos de origem árabe, por um policial francês. O jovem havia parado o carro numa blitz, estava sem carteira, e tentou dar partida no carro para fugir. Foi executado a sangue frio, por um tiro a queima roupa, conforme se pode confirmar em vídeos feitos por alguém que estava próximo.

Entretanto, tenho visto análises apocalípticas que, sinceramente, me parecem desconectadas da realidade.

Há um problema cognitivo também, relativo à ordem de grandeza das coisas. As pessoas assistem a um vídeo, vêem uma imagem, e passam a tratar aquilo como onipresente na França, ou seja, que está acontecendo em todos os lugares ao mesmo tempo. Nas redes sociais, há o efeito looping: exatamente os mesmos vídeos e fotos viralizam, através de várias fontes diferentes, de maneira que o internauta vê carros e prédios incendiados por todo o lado. Mas a realidade não é essa. A França é um país enorme. Paris é enorme. Enquanto a mídia, escrava dos algoritmos, publica imagens de carros queimados, os bares e restaurantes de Paris transbordam de gente. Nas pontes históricas da cidade, grupos se apresentam para dançar e tocar música. Hordas de turistas passeiam à beira do Sena. Na maioria dos bairros mais proletários da cidade, com maior presença de árabes e negros, reina a mais absoluta tranquilidade.

Outra série de análises são racistas, como aquelas onde o autor afirma que a França “errou” ao aceitar tantos imigrantes, ou que descrevem um futuro sombrio para o país em virtude da crescente participação de árabes e muçulmanos na população francesa.

Também não creio que a extrema direita francesa irá se beneficiar das manifestações. A evolução política da França, no entanto, não me interessa aqui, até porque o que entendemos no Brasil por “extrema-direita” costuma apresentar diferenças importantes com o que isso significa para os franceses. Depois da passagem de Bolsonaro pelo país, não me preocupo tanto mais com esses soluços autoritários. Se as instituições e a sociedade civil brasileiras conseguiram sobreviver a Bolsonaro, as francesas igualmente resistiriam a um presidente reacionário.

A maioria das pessoas costuma ter algumas ideias erradas sobre a França. Elas vêem apenas a superfície das coisas, a espuma das últimas notícias. Não é meia dúzia de carros queimados que irá afetar a democracia francesa.

Se os manifestantes começassem a quebrar trens e metrôs, eu ficaria mais preocupado.

Porque é disso que se trata, no fundo. A França vive um acelerado processo de concentração de renda, em parte devido a decisões liberais tomadas por governos recentes. Esse é o problema principal, e as análises sérias sobre os distúrbios sociais que ocorrem no país sempre voltam a ele.

Por outro lado, seria injusto omitir que o Estado francês é um dos mais bem sucedidos, no mundo, na criação de estruturas sociais que visam combater a desigualdade.

Construir um sistema de mobilidade urbana como o francês não é uma conquista menor. Tampouco se deve ignorar que se trata de uma conquista profundamente socializante. Os manifestantes queimam carros, mas ataques ao sistema ferroviário são raros. Isso talvez se explique pelo fato de carros representarem a propriedade individual, enquanto os trens são coletivos. Os trabalhadores franceses os utilizam todos os dias. Os jovens que protestam sabem que seus parentes e amigos, ou eles mesmos, terão de utilizá-los no dia seguinte, ou até no mesmo dia.

A França enfrenta protestos, porque é um país vivo, sensível, ainda capaz de sentir a dor lancinante da morte de um jovem cidadão.

Desejo à França e aos franceses muita sabedoria e força para enfrentar suas dificuldades, faço votos para que saiam dessa crise mais fortes, mais conscientes, mais democráticos, do que entraram.

Mas, francamente, não estou preocupado com a França. A França já tem uma infra-estrutura, isso é o mais importante. Uma infra-estrutura física, com um dos melhores sistemas de mobilidade urbana do mundo, uma infra-estrutura científica, com sistemas públicos e universais de saúde e educação, e uma infra-estrutura política essencialmente democrática, com leis, juízes, associações, partidos, história, imprensa, cultura de protesto, etc.

Estou preocupado com o Brasil.

O Brasil precisa de infra-estrutura!

Seria tão bom que todo esse desejo de exibir bravura política e independência, através da crítica a um presidente da república tão popular, fosse melhor aproveitado! Critiquem Lula, é ótimo! Mas não por firulas ridículas, como o esforço do presidente em fugir de pegadinhas diplomáticas. Critiquem Lula, por exemplo, por não ter ainda apresentando nenhum mísero sinal de que irá enfrentar o drama da mobilidade urbana no país.

Democracia é uma coisa muito boa. Muitos de nós daríamos a vida para defendê-la. Justamente por ser tão boa, contudo, é que ela merece um bom sistema de transporte, rápido, moderno, climatizado, confortável!

Os democratas deste país precisam pensar a democracia não apenas como um conceito abstrato, absoluto ou relativo, mas como uma ferramenta útil para transformar efetivamente a realidade, em benefício da população!

Miguel do Rosário

Jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje

Artigo publicado originalmente no site O Cafezinho

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