A humanidade ultrajada. Por Antonio Carlos de Almeida Castro (Kakai)
“Sou mais velho que o Tempo e que o Espaço, porque sou consciente. As coisas derivam de mim; a Natureza inteira é a primogênita da minha sensação.
Busco – não encontro.
Quero, e não posso.”
– Fernando Pessoa, “Livro do Desassossego”
Quando o desastre da eleição para presidente deste fascista se concretizou, recordo-me bem, uma profunda desesperança se abateu sobre boa parte do povo brasileiro. Uma tristeza indescritível. O Brasil estava dividido. Profundamente dividido. As nossas preocupações eram, dentre outras, as pautas dos costumes, da cultura e da economia. Enfim, sabíamos que todo o horror e o baixíssimo nível vistos no período eleitoral viriam prestigiar o armamento e a falta de prioridade social.
Boa parte de nós tinha a impressão de que fomos vítimas da máquina implacável das notícias falsas, das armações sem limites, dos tais algoritmos das redes sociais que impunham verdades ou mentiras, que faziam e desmanchavam realidades, transformando-as em ilusões; de que estávamos sendo tragados pelos mentores dos bastidores, onde se criava um mundo irreal para nós, mas absolutamente verdadeiro para a máquina de eleger populistas nesse movimento que se iniciou nos anos 2000 na Itália. Como já constatava Giuliano Da Empoli, no livro “Os Engenheiros do Caos”, citando Woody Allen:
“Os maus, sem dúvida, entenderam alguma coisa que os bons ignoram.”
Mas o espírito democrata que habitava em nós teimava em afirmar que essa era a regra do jogo, que a alternância de poderes consolida a democracia formal, que nós, humanistas, nos fortaleceríamos com as provações e adversidades. E fomos acompanhando, perplexos, o desmonte de todas as estruturas que sustentavam o Estado: o desmantelamento do SUS, a falência deliberada da política cultural, a entrega indecente das florestas e de toda a área ambiental, o sucateamento das pesquisas, o abandono da ciência e das universidades, enfim, uma política de terra arrasada para extirpar qualquer pensamento digno de ser chamado de raciocínio. Um show de horror. Uma humilhação.
Tem sido assustador acompanhar as políticas desenvolvidas pelos ministros do governo. Tétricos. Pessoas saídas de um esgoto profundo, das mais obscuras trevas, do lodo. Lembro-me da vergonha que passávamos, quando viajávamos para fora do país, pelo baixo nível do presidente e da sua equipe.
E ainda tínhamos que aguentar as pessoas mais improváveis no nosso dia a dia. Estúpidos de extrema direita, ou simplesmente estúpidos, sem nenhuma formação humanista, que tinham orgasmos múltiplos com o inimputável falando no tal cercadinho na frente do Alvorada. Era uma fase em que ainda se fazia essencial adotarmos certas atitudes, principalmente sair de grupos de WhatsApp e evitar certos ambientes, pois os fascistas estavam com vontade de arrotar a ignorância acumulada.
Reconheço que teve um lado bom nisso tudo: depuramos as relações, bloqueamos os fascistas deslumbrados, cortamos vínculos com aqueles incentivadores da violência, da barbárie e que se travestiam de democratas. Foi uma necessária libertação, que me remeteu ao grande Manuel Bandeira, no seu “Poética”:
“Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado.
…
Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.”
Mas, quis o destino que, no meio desse desastre de um governo fascista, como se fosse pouco, tivéssemos que encarar uma pandemia, a mais grave crise sanitária da história. E aí o fascista inculto se esbaldou. Viu a chance de se fortalecer como mito.
Com uma personalidade incapaz de qualquer reflexão, ou de ouvir quem quer que seja, o presidente resolveu enfrentar, fisicamente, individualmente, o vírus da covid. A impressão que tenho é que ele é tão primário que, num primeiro momento, resolveu provar que podia, ele próprio, acabar com o vírus. Não é possível tanta política negacionista, tanta desumanidade, tanta deslealdade à dor do próximo.
O presidente se superou. Fez da morte seu canto de guerra. Da hipocrisia, sua arma de iludir. Do sadismo, sua pretensa superioridade. E da maldade e desprezo à dor do outro, sua marca pessoal. Ao imitar numa live o desespero de uma pessoa com falta de ar pela infecção do vírus, ele se despiu da condição de ser humano. Não só se rebaixou aos ídolos dele, torturadores que venera, mas também disse a todos nós que somos cúmplices se não reagirmos.
O impeachment virou um jogo de figurinhas repetidas. Todos, de alguma forma, já se manifestaram no sentido de que o impedimento é inevitável. Hoje em dia, aquela divergência familiar já é rara. Ninguém quer dividir as mãos sujas de sangue com um genocida. Ninguém quer se identificar com um presidente que acaba de ser apontado por uma comissão de especialistas em Direito, criada pelo Conselho Federal da OAB para analisar e sugerir medidas no enfrentamento da pandemia, como uma pessoa que deve ser responsabilizada pelos crimes de homicídio e lesão corporal por omissão imprópria. E por crime contra a humanidade, segundo o artigo 7º do Estatuto de Roma.
Claro que tal proposta ainda não foi votada e aprovada pelo Conselho Federal, mas já está devidamente sacramentada pela comissão, graças à coragem e à independência intelectual dos juristas membros do grupo, que cumpriram o papel que lhes cabia: Carlos Ayres Britto, Miguel Reale Jr, Siqueira Castro, Clea Carpi, Nabor Bulhões, Geraldo Prado, Marta Saad e José Carlos Porciúncula. Tive a alegria de fazer parte da comissão, como um gesto de generosidade do presidente Felipe Santa Cruz.
A proposta elaborada foi técnica e comprovou que o histórico de negação deliberada na compra das vacinas, dentre outras condutas, caracterizou a omissão penalmente relevante. O presidente tinha o dever de zelar pela saúde pública do brasileiro, como garantidor desse bem jurídico, e, ao contrário, optou por violar esse direito.
Ao abandonar a população à própria sorte, fundando uma verdadeira República da Morte, inclusive tentando impedir que outras autoridades tomassem medidas indispensáveis, o presidente revelou ser responsável por ataques generalizados e sistemáticos contra o povo brasileiro. A imputação de crime contra a humanidade por ofensa ao artigo 7º do Estatuto de Roma dá a dimensão da nossa catástrofe.
Espero que essa dimensão do nosso desamparo tenha servido para uma reflexão sobre o monstro que preside o Brasil. Felizmente, já encontro poucos bárbaros a apoiar esse responsável por cerca de 350 mil mortos. Quase todos nós fomos atingidos, sob o prisma pessoal, com o maldito vírus. Cada um faz sua ponderação e, é interessante, encontra uma maneira de fazer o enfrentamento desse maldito vírus fora dos espaços tradicionais.
Está chegando a hora de saber quem tem uma postura cristã, uma visão que prioriza a humanidade e o amor ao próximo, ou que se posiciona pela morte e pelo fascismo. Nunca na história recente da humanidade foi tão fácil definir o comportamento das pessoas. Não há erro. Não há como ter dúvidas. É um raciocínio, por incrível que pareça, binário.
Quem é a favor da vida? Quem apoia a priorização da ciência? Quem coloca a vacina como prioridade absoluta? Quem acredita no isolamento e no uso de máscara como base de tudo? O contrário é o que é: apoia o culto à morte, apoia esse presidente fascista, genocida, bandido.
Homenageio o filósofo Unamuno na guerra civil espanhola, quando o franquista general Millan Astray deu o grito, na Universidade de Salamanca, “Viva la muerte!”, ele respondeu de pronto:
“Às vezes o silêncio é melhor do que mentir.
…
Mas não convencerá. Pois para convencer precisará do que lhe falta: a razão e o direito em sua luta.”
Agora é uma definição simples. É entre a barbárie e a vida, nem é mais uma possível controvérsia com a ciência. É uma definição de vida, de caráter. Ou é bandido, fascista e assassino, no mínimo por omissão, ou é resistente a essa tragédia que se abateu sobre nós. Todos nós! Vale lembrar de Ernst Toller:
“Estamos todos vinculados ao mesmo jogo pelo destino.
Estamos todos unidos pela criatura de mil anos de tortura.
A compulsão das trevas rodopiam através das marés para todos nós.
Oh, maldição dos limites!
As pessoas odeiam sem escolha!
Tu, irmão da morte, vai conduzir-nos juntos.”