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A Jornada Mundial da Juventude e a visita do Papa Francisco ao Brasil: notas reflexivas sobre mídia, religião e política por Magali do Nascimento Cunha

17 - 23 minutos de leituraModo Leitura
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Encerradas a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e a visita do Papa Francisco ao Brasil, ficam os desafios para a reflexão em torno dos desdobramentos que estes eventos religiosos trazem para a relação mídia-religião-política, à qual temos nos dedicado.

Recebemos pelas lentes e páginas das mídias relatos que mostraram o mesmo clima de jornadas anteriores, reunindo centenas de milhares de jovens motivados pela fé de orientação católica a renovarem seu compromisso com a Igreja e sua missão, muito em torno da presença carismática do seu líder maior, o Papa. A singularidade do encontro do Brasil estava na presença do Papa Francisco, recém-empossado, em sua primeira visita oficial. É possível afirmar de imediato que a realização da JMJ com a presença do Papa Francisco alcançou um feito de peso: reforçou a instituição católica como a “grande religião” do Brasil.

Pode-se também identificar elementos na visita do Papa vistos como positivos, que estimulam um reposicionamento da Igreja Católica no País e sua pastoral a uma postura menos fechada em si mesma e mais alinhada com as demandas populares cotidianas, e também pontos polêmicos que mostram que Francisco ainda tem muito a percorrer se suas palavras pavimentam de fato o caminho que deseja trilhar.

Portas que se abrem


Foto: Folharibeiraopires.com.br

Desde fevereiro de 2013, Francisco vinha encantando os fiéis, as mídias e seu público com atitudes simbólicas de marcação de uma nova etapa na vida da Igreja Católica, que necessitaria imprimir: despojamento, humildade, busca de correção de princípios e de retidão. Os posicionamentos do Papa Francisco em terras brasileiras reafirmaram estas atitudes.

Não é por acaso que essas posturas e palavras de Francisco estejam animando e renovando a

esperança de novos tempos para os grupos católicos chamados progressistas (em especial os teólogos da libertação, as pastorais sociais e as Comunidades Eclesiais de Base), colocados à margem da igreja durante mais de duas décadas, por meio de processos de silenciamento e da nomeação de bispos que diminuíram seus espaços. Ações em nome de um projeto de nova cristandade implementado pelo Papa João Paulo II (Evangelização 2000/Lumen 2000), que não enfatizava posturas políticas de compromisso com a promoção da justiça mas sim a reafirmação da identidade religiosa católico-romana.

O declínio do catolicismo em termos numéricos, em especial no continente onde repousava sua maior força, o latino-americano, revelou os rumos malsucedidos no projeto. Se João Paulo II ainda atraía atenções para a Igreja Católica e alcançava adesões e simpatia com seu carisma pessoal e sua história de pastor polonês, de “papa do povo”, Bento XVI com sua postura burocrática, frieza e distância do povo levou a um crescente desgaste de imagem. Ambos os pontificados foram engolidos pelas tramas da política eclesiástica alimentadas por escândalos comprometedores da trajetória da Igreja e pelas posturas de fechamento da igreja ao diálogo interno (entre suas diferentes tendências teológicas) e externo (com as demandas da sociedade).

Francisco retoma o carisma da popularidade de João Paulo II casando-a com um discurso de pastor, solidário, preocupado com quem sofre e carece de atenção e justiça. Torna-se uma promessa de novos tempos para uma igreja cuja imagem tem sido desgastada publicamente. A proposta, por ações simbólicas, de uma igreja menos burocrática, mais despojada e humana é a chave que abre a porta fechada por João Paulo II e por Bento XVI a uma igreja socialmente engajada.

O Papa Francisco proferiu diversos discursos na semana que passou no Brasil: falou aos jovens participantes da Jornada; a participantes de missa no Santuário de Aparecida; a participantes em visitas a uma favela, a um hospital, a um centro de tratamento de dependentes químicos; a políticos e pessoas ligadas a organizações civis; aos bispos da Igreja Católica; além de falas mais breves em momentos como o da sua recepção e despedida.

Nesses espaços foram ressaltados: o papel da Igreja como comunidade acolhedora que sai ao encontro das pessoas, em especial as pobres, das periferias, pois elas são intermediárias de um encontro com Cristo; o papel do Cristianismo como gerador de fé que é fonte de alegria e de esperança; o diálogo como caminho para um futuro melhor no mundo, instrumento na política, que deve ser reabilitada/revalorizada, e entre as religiões. O Papa pregou a necessidade de uma visão humanista da economia e de uma política que deve realizar cada vez mais e melhor a participação das pessoas, por isso, como se esperava, valorizou as manifestações políticas públicas “como vigorosas contribuições das energias morais”. Nesse sentido, afirmou que o Estado deve ser laico mas garantindo que as religiões preguem os seus princípios. Especificamente aos jovens, o Papa incentivou o seu papel como motor da Igreja e pediu que não desanimem com a política por causa da corrupção. Estes conteúdos têm sido avaliados como positivos para um reposicionamento da Igreja Católica no Brasil que reabra espaços para teologias e pastorais comprometidas com demandas populares.

Já em relação à JMJ, a interação dos jovens de todo o mundo com as comunidades locais e os estudos/debates que ocorriam na Tenda das Juventudes, promovida por diversas organizações católicas e ecumênicas, não foram destaque nas mídias, já que não renderam espetáculos. Todavia, revelaram-se ponto alto do evento. Nas comunidades, jovens conheceram experiências locais e partilharam suas próprias em interação com famílias, com paróquias e com CEBs. Um dos destaques foi o fato de que famílias e igrejas evangélicas abriram suas portas para esses momentos, transformando a experiência em espaço ecumênico.

Com o tema “A juventude quer viver”, a Tenda das Juventudes, ignorada pelas mídias, foi espaço de debate e reflexão da realidade juvenil e políticas públicas para a juventude e contou com mesas temáticas, celebrações e momentos de oração, exposições, apresentações culturais. Ali havia o espaço em memória dos mártires, denominado Santuário dos Mártires, local dentro da tenda para aprofundar e celebrar a memória de pessoas que perderam a vida por conta de uma pastoral socialmente engajada.

As mesas temáticas trataram de desafios socioambientais da humanidade e a juventude; crise econômica, direitos sociais e juventudes; tráfico de pessoas; juventudes, cultura, comunicação e direitos humanos; civilização do amor e a evangelização da juventude na América latina; e solidariedade. A atividade foi organizada pela Pastoral da Juventude, Cáritas Brasileira, Juventude Frasciscana, Comissão Brasileira de Justiça e Paz, Cajueiro – Centro de Formação, Assessoria e Pesquisa em Juventude, REJU – Rede Ecumênica da Juventude, Irmandade dos Mártires da Caminhada, Setor Pastoral da PUC/RJ, com a parceria do PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; da Superintendência de Juventude do Governo do RJ; da Secretaria Nacional de Juventude do Governo Federal; e da Rede Brasileira de Centros e Institutos de Juventude.

No espaço denominado “Cidade da Fé”, no Riocentro, várias organizações também tiveram chance de chamar os participantes da JMJ à reflexão em temáticas diversas, como, por exemplo, a Marcha Mundial por Justiça Climática, Sustentabilidade e Contra o Aquecimento Global.

Também na JMJ, a dimensão ecumênica se fez presente em outras situações. A convite da Renovação Carismática Católica, os cantores gospel evangélicos Asaph Borba, Dawidh Alves, Bené Gomes, Mike Shea, Isaías Carneiro, Mike Herron e Matteo Calisi se apresentaram no Encontro Internacional das Novas Comunidades e Renovação Carismática Católica. Borba postou no Facebook: “Hoje pude ver o que Deus pode fazer quando quebramos as barreiras que nos separam não apenas dos católicos mas das vidas”. Houve ainda encontros, como o realizado na PUC do Rio, que envolveram jovens de diferentes religiões.

Nas mídias impressas foi timidamente divulgado o encontro do Papa com fiéis de uma congregação da Assembleia de Deus na favela de Manguinhos. O pastor Elenilson Ribeiro aceitou o pedido de um membro da equipe organizadora para que o papa passasse por lá: “Aceitamos, claro, afinal somos irmãos em Cristo. É uma interação positiva, nós aprendemos sempre que não existe essa diferença e nem deve haver briga. Sem paz com todos, não veremos Deus”, disse. O papa cumprimentou os pastores e pessoas que estavam na igreja e orou o Pai Nosso com o grupo. O pastor Eliel Magalhães, também liderança da igreja, ressaltou que o templo ficou à disposição dos peregrinos católicos o tempo todo, prestando suporte às pessoas. “A gente tem o seguinte posicionamento: Jesus Cristo é o senhor. Nosso Pontífice não é o papa, mas ficamos muito contentes com a visita. Deixamos a igreja aberta para apoiar as pessoas, quem precisasse ir ao banheiro, beber uma água”, explicou Magalhães a repórteres.

São aberturas de portas em muitos sentidos. Sites evangélicos divulgaram opiniões positivas quanto às posturas apresentadas pelo Papa Francisco.  Há também quem queira manter as portas fechadas. O cantor Asaph Borba desabafou em espaços na internet a tristeza com comentários críticos rudes em relação a sua participação na JMJ como evangélico. Em sua conta no Twitter o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia postou, em tom debochado, críticas à visita do Papa e à cobertura mídia, com discurso que coloca os evangélicos como competidores em vantagem pela hegemonia do campo religioso.

Aspectos controversos

O uso de recursos públicos para financiamento da JMJ e da visita do Papa foi um ponto controverso marcante que culminou com o caso da transferência do local do encontro do Papa com os participantes da JMJ de Pedra de Guaratiba para Copacabana, por conta das chuvas. Todo o investimento financeiro feito no terreno com terraplanagem e infraestrutura, foi desperdiçado por conta do lamaçal que se tornou o local. No momento, há uma investigação do Ministério Público sobre a aplicação e gestão dos valores públicos pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Um protesto organizado no final da apresentação da Via Sacra em Copacabana (26 de julho) denunciou este aspecto com palavras de ordem como “Você abençoado, também é explorado”. Manifestantes chegaram próximos ao palco e conseguiram provocar o encerramento do show gospel que acontecia.

O uso de recursos públicos com a visita do Papa e a JMJ também foram objeto de protesto no Santuário de Aparecida. A manifestação foi organizada Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto e pelas organizações Periferia Ativa e Resistência Urbana. “O objetivo é dialogar com o discurso adotado pelo Papa de proximidade com os pobres. Queremos que ele se posicione contra esses ataques que os pobres têm sofrido no Brasil, como os despejos para as obras da Copa e as mortes cometidas pela polí­cia”, disse Guilherme Boulos, do MTST ao jornal O Globo.

O Papa não enfatizou a moral sexual da Igreja Católica em seus pronunciamentos, contrariamente ao que se esperava. No entanto, o tema esteve presente por meio de manifestações de organizações LGBT e feministas. Alguns grupos fizeram questão de chamar a atenção com gestos simbólicos impactantes como o “beijaço gay” em frente a uma Igreja Católica no Largo do Machado, no Rio, também acompanhados de protestos contra os gastos públicos com a visita do Papa e a JMJ, por meio de cartazes como “Do Papa eu abro mão, quero mais dinheiro para saúde e educação”. Já participantes da Marcha das Vadias, na Orla de Copacabana reivindicaram o fim do preconceito contra homossexuais e o da violência contra as mulheres, além da legalização do aborto. Houve algumas performances de nudez e quebra de imagens de Nossa Senhora que causaram rejeição da parte do público que assistia a marcha.

A ONG Católicas pelo Direito de Decidir também organizou manifestações em diferentes locais e distribuiu uma carta aberta ao Papa Francisco pedindo mudanças na Igreja, como o fim da condenação ao aborto e a bênção à união de casais do mesmo sexo (Leia aqui a Carta Aberta).

Em entrevista à revista Carta Capital a presidente da ONG Maria José do Rosado Nunes fez a seguinte crítica: “A cabeça da juventude é uma cabeça que depende de inúmeros fatores e ser jovem não é sinônimo de ser progressista. Os jovens estão inseridos no meio social e pertencem a uma classe social. De que jovens estamos falando? A juventude é um mundo muito diverso em termos da sua inserção de classe, sua inserção de raça, em todos os aspectos. Se aqui no Brasil a gente tem a elite brasileira com a cabeça tão conservadora, é de se supor que os filhos e filhas dessa elite reproduzam de certa maneira esse conservadorismo. Encomendamos uma pesquisa Ibope, no contexto da visita do papa, para mostrar o quanto a juventude está distante daquilo que são as proposições doutrinais da Igreja Católica. Há uma juventude que segue o papa, que vai às jornadas, mas que não pratica a doutrina proposta por ele. Acho que a gente não pode imaginar que toda essa juventude não faça sexo, seja heterossexual, não use camisinha e anticoncepção. Uma coisa é a necessidade que eles têm, digamos, de guias e de lideranças. Agora, dessa juventude, qual é a proporção daqueles que seguem a doutrina?” Veja a entrevista na íntegra.

Do lado de quem defende os princípios restritivos da moral católica também houve criação de polêmicas. A Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, um movimento contra o aborto, distribuiu entre os participantes da JMJ pequenas réplicas de fetos para tentar convencer os jovens a “valorizar o ser humano desde a fase inicial de sua vida”, de acordo com o presidente da associação, Humberto Leal Vieira. A miniatura, feita em plástico e em tamanho real, é de um feto na 12ª semana de gestação. “A representação vem dentro de uma caixinha com um folder com explicações científicas e religiosas sobre o início da vida em três idiomas: português, espanhol e inglês”, explica Humberto.

Estas iniciativas, no entanto, causaram polêmica entre os jovens. Uma participante que recebeu um terço com “pequenos fetos” durante o encontro católico criticou os peregrinos por apelarem para a representação. Em seu perfil no Instagram, Renata Spolidoro se disse “muito assustada” com o “presente”. “Ganhei um terço. Ok. Um terço com pequenos fetos. Um terço com pequenos fetos para rezar contra o aborto. Parecem uns feijões, mas são fetos. Sério, o problema é quando as pessoas passam do seu limite e resolvem se meter na vida dos outros. Nada contra você ter a sua religião e acreditar que vai pro inferno se fizer aborto. Ótimo. Abortar ou não é uma escolha. Cada um sabe de si. Cada um sabe do seu corpo. Tô muito assustada com esse terço”, relatou ela ao Noticias Terra.

O silêncio de Francisco com a temática da moral sexual, do casamento e da ordenação de mulheres foi quebrado no trajeto de retorno ao Vaticano, no avião, durante a viagem, quando concedeu entrevista de 90 minutos aos jornalistas que viajavam com ele. Perguntado por que não falou sobre os temas aos jovens, o papa respondeu que os jovens já conhecem a doutrina clara da igreja sobre os temas e não houve necessidade de voltar a eles. Portanto, para Francisco o ensinamento da Igreja não muda. Mas quando questionado sobre recentes revelações de que um assessor próximo seria homossexual e a uma frase atribuída a ele no início de junho, de que havia um “lobby gay” no Vaticano, o pontífice declarou: que os gays “não devem ser marginalizados, mas integrados à sociedade” e que não se sente em condição de julgá-los. “Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”, afirmou Francisco aos cerca de 70 jornalistas que participavam da entrevista no avião. “O catecismo da Igreja Católica explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser discriminados por causa disso, mas integrados à sociedade.” E concluiu: “O problema não é ter essa tendência. Não! Devemos ser como irmãos. O problema é fazer lobby, o lobby dos avaros, o lobby dos políticos, o lobby dos maçons, tantos lobbies. Esse é o pior problema”.

Reinaldo José Lopes em artigo para a Folha de São Paulo fez interessante avaliação dessa posição que vale transcrever aqui:

Nesses três temas polêmicos (homossexualidade, aborto e ordenação de mulheres), ele se limitou a dizer: o ensinamento da Igreja não muda e não achei que era o caso ficar martelando esses temas, em especial durante a Jornada Mundial da Juventude.

Por outro lado, é inegável que, numa instituição com tanto peso histórico quanto a Igreja, enfoques e ênfases também são importantes. Só para citar um exemplo, é improvável que João Paulo 2° achasse supérfluo, ou “fora de hora”, insistir nessas questões.


E abordar a questão da homossexualidade primeiro pelo ângulo da “misericórdia”, por mais que isso possa soar condescendente aos ouvidos da militância gay, pode ter repercussões importantes na maneira como a questão é tratada no cotidiano pastoral da Igreja.


Veja a íntegra da entrevista com o Papa aqui.

Religião na mídia potencializada

Durante a JMJ e a visita do Papa Francisco ao Brasil, a Rede Globo fez “evangelismo”. Esta frase pode resumir, com linguagem religiosa, o que significou uma semana de atuação da emissora que comandou o “pool” de redes responsáveis pela captação e distribuição de imagens dos eventos por meio do trabalho de mil profissionais. Foram veiculados flashes ao vivo durante toda a programação com discursos do Papa Francisco transmitidos na íntegra. Apresentadores deixaram as bancadas de seus telejornais para atuarem de Aparecida do Norte e da Praia de Copacabana enquanto diretor de teatro da emissora, atores e atrizes tiveram participação destacada na criação e na representação da encenação da Via Sacra nas areias de Copacabana. Com a transmissão ao vivo da encenação, sem entrada de comerciais, pela primeira vez uma novela da Rede Globo (Flor do Caribe) deixou de ser exibida por conta de uma cobertura dessa natureza. Já a Missa de Envio da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) no domingo pela manhã venceu o Grande Prêmio de Fórmula 1 da Hungria – ele não foi transmitido e os comentaristas da Rede Globo Rubens Barrichello, Reginaldo Leme e Luciano Burti sequer foram enviados à Europa para acompanhar a prova. Até então, GPs só deixavam de ser transmitidos se coincidiam com jogos de futebol.

Tudo isto foi alimentado por discursos extremamente positivos de todos os momentos mostrados, com toques de emocionalismo explícito da parte de jornalistas que se tornavam comentaristas, em afirmações como: “Todos os corações já estão abertos para ele (o Papa)”, ou “É muita emoção!”

Além da Rede Globo, a Bandeirantes foi a que deu mais espaço ao evento católico e ao Papa com transmissões ao vivo e alteração da programação, com linguagem também ufanista na cobertura. Da TV aberta brasileira, apenas Band e Globo tiveram representantes no voo papal desde a saída do Vaticano até o retorno.

Das grandes redes de TV aberta, SBT e Rede Record fizeram uma cobertura “normal” do que deveria ser mesmo tratado como um fato jornalístico de peso. A Record, no entanto, não deixou de registrar suas marcas religiosas contrárias ao catolicismo em reportagens que privilegiavam aspectos negativos do evento e as temáticas polêmicas que o envolviam. Guerras religiosas à parte, a Record acabou prestando um serviço ao mostrar um “outro lado” da semana, incluindo reclamações de moradores de Copacabana com os transtornos que vivenciaram.

O jornalista Paulo Victor Melo em artigo on-line faz afirmação crítica pertinente a esse quadro aqui descrito: “Os telejornais praticamente se transformaram em extensões da assessoria de imprensa do Vaticano; os programas de variedade e entretenimento resumem-se ao papel de retratar hábitos e curiosidades da passagem do primeiro papa latino-americano pelo Brasil. Enfim, uma série de informações desprovidas de senso crítico que abandonam o jornalismo e o interesse público e escancaram uma relação íntima entre mídia e religião no Brasil”.

As críticas do deputado federal pastor Marco Feliciano e do pastor Silas Malafaia à cobertura predominante nas telas, denunciando a desvantagem dos evangélicos no tratamento, explicita o clima de disputa no campo religioso e midiático e também deixa claro o nível de relacionamento das redes de TV aberta com as religiões. Historicamente pertencentes a famílias economicamente poderosas no País, as TVs refletem o catolicismo conservador, ou seja, trabalham na defesa da tradição católica romana em suas coberturas jornalísticas e em demais programações (a exceção é a Record de propriedade da Igreja Universal do Poder de Deus). Portanto, tudo o que diz respeito à instituição católica e sua reconhecida liderança é reforçado. Tudo o que signifique alinhamento com esta tradição também ganha espaço – o lugar garantido aos padres cantores e à Renovação Carismática Católica mostra bem isto. Tudo o que registre ou mesmo simbolize a chamada igreja progressista é silenciado. Basta buscar o tratamento dado aos encontros nacionais das Comunidades Eclesiais de Base que reúnem milhares de pessoas há décadas: não há. O caráter despojado e humilde do Papa Francisco tão destacado na cobertura da TV afina-se bastante ao tradicionalismo religioso – quem questionaria isto? – porém, os inevitáveis destaques aos discursos do Papa Francisco sobre justiça para os pobres e sobre privilégio pastoral para as periferias soaram como fora de lugar nos textos dos telejornais.

Em relação aos evangélicos, identifica-se uma abertura das redes de TV, mas de forma estreitamente relacionada ao plano mercadológico, ou, aos interesses comerciais, que passam pela venda de espaços nas grades de programação e em captação de audiência e ampliação de mercado, como é o caso da Rede Globo mais recentemente (leia mais aqui). Com isso ganham também cobertura de seus eventos (shows, marchas) mas não a defesa de seus princípios. Da mesma forma que em relação aos católicos romanos, o que existe nas igrejas evangélicas fora desses padrões midiáticos comerciais não tem espaço nas TVs. Iniciativas confessionais tidas como progressistas no campo sociopolítico são ignoradas e muito mais as ecumênicas. O silêncio em relação à visita do papa a uma congregação da Assembleia de Deus na favela de Varginha é o retrato disso. Já as outras religiões, além de terem tempo mínimo destinado a elas em coberturas jornalísticas e demais programações, quando aparecem, o caráter exótico e curioso é sempre mais destacado na linguagem desenvolvida, com poucas exceções.

Os efeitos políticos desta postura das mídias e seu tradicionalismo religioso já podem ser sentidos e têm como emblema o investimento que fazem nas guerras religiosas e nas polarizações, como foi o “caso Feliciano” em março passado, gravando na memória dos telespectadores nomes e posturas conservadoras que encontram ressonância na população.

Por fim…

Um humorista escreveu em coluna de jornal: “O papa é muito simpático, mas é papa”. Sim, Francisco leva um nome simbólico, expressa atos simbólicos, que o tornam simpático e fonte de esperança de renovação da Igreja Católica, mas do alto do seu pontificado ainda não teve tempo de revelar ações que correspondam a estas expectativas. Transformar a Cúria e o Banco do Vaticano seria pouco. Precisamos aguardar. Afinal, não dá para esquecer que o papa João Paulo II também encantou o Brasil e os diferentes grupos da Igreja Católica em sua primeira visita em 1980, no início do seu pontificado. Foi o primeiro Papa a “peregrinar” pelo mundo, visto como papa do povo; sua atitude de beijar o chão ao descer do avião comovia o público. Na ocasião, João Paulo II falou da igreja que quer ser a igreja dos pobres, foi chamado por Dom Helder Câmara de “irmão dos pobres e meu irmão”, fez discurso em favor dos trabalhadores rurais, visitou a favela do Vidigal, para onde, num gesto simbólico, doou seu anel de ouro, entre outras situações.

Tudo o que foi testemunhado pelo público, agora em 2013, em termos de encantamento com gestos, atitudes e palavras, foi igualmente presenciado em 1980. Cinco anos depois, o primeiro processo do Vaticano contra um teólogo da libertação do Brasil era concluído: frei Leonardo Boff foi condenado a um ano de silêncio obsequioso, perdendo o direito de lecionar e sendo destituído de funções editoriais. Foi o primeiro de muitos outros envolvendo brasileiros, latino-americanos e de outros continentes censurados. Boff declarou em entrevista neste julho de 2013 que o Papa Francisco lhe pediu uma cópia do seu livro sobre o novo pontificado “Francisco de Assis e Francisco de Roma”. Mais uma chave para abrir as portas fechadas? Que não seja apenas uma fresta.

* Jornalista, professora da Universidade Metodista de São Paulo com pesquisas em Mídia-Religião-Cultura. Doutora em Ciências da Comunicação. Membro da Diretoria da Sociedade Internacional Mídia, Religião e Cultura. Membro da Igreja Metodista a quem representa no Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas. Email: magali.ncunha@gmail.com.
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