Aldeia Nagô
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A ‘live’ do Caetano Por Joaquim Ferreira dos Santos

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Tudo em volta está deserto, tudo demorando em ser tão ruim, e por isso mesmo é preciso que Caetano Veloso não se faça odara, faça a ‘live’ na sexta-feira e, agora pelo streaming, repita o que já cantava pelos cinco mil alto-falantes de outrora – nosso coração não se cansa de ter esperança.

Esta semana chega o novo técnico do Flamengo, o Congresso debate a reforma tributária e o STF avança com o processo das fake news. Nada será de maior importância do que ouvir Caetano, a luz do sol de novo no jardim das cajuínas. Poucas vezes fomos tão carentes da atenção ao seu refrão. Paira sobre todos a monstruosa sombra da ignorância, e ele, apaixonadamente como Peri, vai opor aos podres poderes de sempre o amor assim delicado dos grandes artistas.

É uma ‘live’ contra a morte generalizada que acomete a nação, a vacina possível para purificar o Subaé de nossas almas despedaçadas. O não ao não. Sem lenço, sem documento e sem pijama, o compositor dos destinos desentristece nosso coração em quarentena. Não é qualquer coisa. É o horizonte que se deixa pintar de novo com a seda azul do papel que envolve a maçã. Pense no Haiti – durante o programa não será mais aqui.

Que o mano Caetano venha com as armas de Jorge, cheio do tesão flutuante do Rio, mas não só. Convoque a juba do leãozinho, as garras da tigresa, a elegância sutil de Bobô e o galo que fez cocorocô. Todos juntos, num canto afinado com o que o melhor do Brasil compactua, botem os cornos da poesia acima da manada. Mostrem que qualquer maneira de amor vale a pena e, pelo amor de Deus, que o Havaí finalmente se faça aqui.

A ‘live’ do Caetano, como foi a do Gilberto Gil, será a confirmação de que a ciência cura, mas só a arte salva – e sem efeitos colaterais. É preciso saber mais da piscina, da Carolina, da Clementina, da Teresa Cristina, e menos da hidroxicloroquina. Nesta noite, o coração vagabundo do brasileiro vai palpitar acelerado, bater diferente, mas provocado apenas pelo estupor diante da beleza das canções. Desde que o samba é samba tem sido assim, mas com Caetano esse cacho de acácias ficou ainda mais delicado. Existirmos, afinal, a que se destina?

O país tem ouvido palavras muito feias, ditas por gente que jamais saberá do prazer de roçar a língua na língua de Luís de Camões. É uma dádiva que o doce bárbaro venha agora no meio dessa escuridão tamanha –  quando tudo é certo como dois e dois são cinco – e faça soar sua sílaba de cultura e civilização. Onde querem revólver, ele é coqueiro. Onde querem cowboy, chinês.

Os grandes artistas criam nações paralelas, como os sertanejos do Guimarães Rosa, as ninfetas do Dalton Trevisan e as suburbanas passionais do Nelson Rodrigues. Na sexta-feira estarão o índio impávido que nem Mohammad Ali, a filha da Chiquita Bacana, o cara de olhinhos infantis feito os de um bandido, as crianças cor de romã, a dona das divinas tetas, a abelha rainha, os soldados quase todos pretos, a mulher preparando outra pessoa e o menino do Rio.

É uma nação que, nu com sua música, Caetano Veloso construiu a partir das boas palavras e dos bons quereres. Gente feita para brilhar. Ficará no ar por zil anos, em eterna e vitoriosa ‘live’ contra os ridículos tiranos.

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