A nação inconclusa incapaz de superar a barbárie. Por Josias Pires
Conversei com uma pessoa indecisa neste sábado na feira de São Joaquim – um moço negro, talvez 40 anos, pegou o nosso panfleto, conferiu que era Haddad13, disse:
– Votei nele no primeiro turno. Agora estou indeciso.
– De onde veio a dúvida?
– Estou vendo na televisão. Estou observando.
Ele quer saber como ficará a situação de milhões de pessoas pobres como ele, minúsculo feirante, agricultor, morador de periferia.
Ele quer saber como sua vida, seu mundo ficará melhor.
Para o moço negro da periferia é fundamental que tenha fim a situação atual em que uma pessoa, um conhecido, um amigo, um vizinho, um parente tenha a casa arrombada de madrugada pela polícia – ou por bandidos – destruindo a inviolabilidade do lar, lugar sagrado, onde vive com seus mais próximos, lugar indevassável, que só pode ser atingido mediante ordem judicial explícita e que seja cumprida durante o dia. A barbárie brasileira assenta-se neste desprezo pelos direitos e garantias fundamentais.
Neste momento grave da nação inconclusa o moço indeciso, inseguro, está observando a televisão e outros mais jovens veem memes nas redes sociais que lhes trata como público – o popular trasvestido de espectador, disponível público das mídias.
No Brasil de herança escravista princípios liberais básicos – liberdade de opinião e expressão, invulnerabilidade do lar e do corpo – parecem delírios fora de lugar. As revoluções francesa e americana foram feitas para o reconhecimento de que a todo ser humano deve ser garantido o respeito a direitos fundamentais. Devem ser cidadãos. Mas no Brasil isto parece ter deixado de fazer algum sentido. O liberalismo no Brasil sempre valeu apenas para garantir as liberdades dos proprietários. As elites precisam entender que o Brasil é nação inconclusa.
Todos nós precisamos entender que somos uma nação inconclusa.
Pretos, pardos, caboclos e brancos pobres continuam fora do foco dos projetos das elites. As experiências de Vargas, Goulart e Lula são pontos fora da curva. Agora, a maioria voltou a ficar fora da nação, fora do usufruto das riquezas e dos bens da nação. O orçamento público é majoritariamente montado com a contribuição dos pobres e apropriado pelos ricos e muito ricos.
Como lembrou esta semana o professor Muniz Sodré, na abertura do Congresso da UFBA, as elites brasileiras nunca enxergaram o povo brasileiro. No lugar do povo puseram o espectador, o público, sobretudo público de espetáculo de praça para fazer você rir e, no limite, morrer de rir, enquanto nos matam … membros das elites, inclusive, alguns dos seus mais ilustres abolicionistas, como Joaquim Nabuco, pontuou Sodré, desprezaram o povo brasileiro, inclusive porque seus exemplos a serem imitados eles os viam apenas na Europa.
O que interessa ao moço negro da periferia e a todos nós é passarmos a ter polícia humanizada, digna, que jamais seja formada para odiar, para matar; precisamos da polícia que contribua com a prevenção do crime e que proteja a sociedade particularmente dos grandes criminosos que estão longe das câmaras. Desejamos um Estado que desestimule a criminalidade, promovendo a igualdade social e a solidariedade.
As televisões oferecem durante o almoço dos brasileiros pobres das grandes cidades o prato sangrento do submundo da caça de pequenos peixes do crime da periferia. Manipulação abjeta, que vilipendia afetos diante de cenários e personagens que lhes tocam de perto.
O fato é que as elites brasileiras sempre foram mesquinhas. A escravidão começou a ser condenada internacionalmente, a partir da Revolução Francesa e da pressão inglesa, logo no começo do século XIX, mas as elites brasileiras e portuguesas retardaram o máximo o fim da escravidão e , primeiro, o fim do tráfico transatlântico, que se deu em 1850, mas cuja lei inicial da proibição foi promulgada em 1830 e nunca foi cumprida. Foram vinte anos (1830-1850) de tráfico de africanos ao arrepio das próprias leis brasileiras. O Brasil viveu vinte anos de tráfico transatlântico ilegal, vinte anos de ilegalidade explícita e sustentada pelas autoridades judiciárias e governamentais, época em que o Brasil era espécie de país pária, de elites desabusadamente ilegais, satirizado pelo dramaturgo genial da época Martins Penna.
Quase um milhão de africanos entraram nesse período de tráfico ilegal e pouco mais de 10 mil deles foram reconhecidos legalmente como “africanos livres”. Depois de 1850, com a proibição final do tráfico transatlântica, por forte pressão inglesa, em meio a crise moral da sociedade escravista, continuou o tráfico interno. Crise moral e política que se aprofundou depois da guerra do Paraguai, que contou com a participação majoritária e decisiva de negros e mestiços livres, inclusive escravos libertos, A abolição da escravatura jamais deve ser resumida à lei Áurea – a luta pela fim da escravatura começou no quilombo de Palmares e estendeu-se pela longa história de fugas, quilombos, revoltas, enfrentamentos diários e pela capacidade de manter sistemas culturais distintos – ainda que com eles dialogue – daqueles exclusivos do colonizador.
A acumulação de forças que se deu na luta conta a ditadura civil-militar na década de 1970 e a crise do capitalismo de 1973 levaram ao fim dos governos dos generais em fins de 70 e começo de 1980. Logramos a ampliação da esfera pública, com os sindicatos, associações, a gestação e desenvolvimento de forte energia que levou Lula e o PT ao poder no quadro do acordo da Nova República. Depois da ética na política ter ido para o vinagre vê-se que Maquiavel continua sendo mestre para o debate sobre a natureza do poder do Príncipe.
Mas para além de Maquiavel e para além da trama do poder institucional é preciso construir a democracia na base da sociedade. Para isso antes de tudo é preciso aprender a ouvir os mais pobres, os mais explorado pelos sistemas político e econômico, os que mais precisam de transformações sociais solidárias.
Neste tempo em que as coisas estão sendo decididas pela televisão e redes sociais, e que a maioria poderá legitimar pelo voto os lobos que tramam contra os interesses populares, devemos enfatizar a necessidade de sairmos das bolhas, estourar as bolhas, fazer que nossos corpos transitem produzindo diálogos, encontros entre diferenças brasileiras em favor do bem comum.
Antes de tudo devemos evitar a tentação de implantar um estado policial em nosso país. Infelizmente caminha-se nesta direção. Quando o STF e o Congresso rasgaram a Constituição, instigados pelo poder econômico e mídias tradicionais, o país foi abandonado à deriva. Ao jogar na lata do lixo princípios liberais, básicos, elementares, fundamentais nos rendemos à barbárie.
A ordem que a sociedade brasileira necessita é a ordem do respeito à dignidade humana para a maioria da sua população. Necessitamos, isto sim, é da defesa do povo e das riquezas nacionais. Democracia para que sejamos capazes de saltar a fogueira do totalitarismo.
Depois das revoluções americana e francesa surgiu no mundo e começou a existir no Brasil o sistema que pôs abaixo o poder absoluto do rei, do imperador, daquele que manda e desmanda em tudo e em todos, que está acima da lei, pois ele mesmo é a lei, que se vê como representante de deus na terra.
Os governantes dos Estados, os reis, foram forçados a começar a respeitar a fonte de poder que reside nos demais seres humanos – a sociedade é a fonte do poder político. A fonte da lei. Deus deve ser a fonte da lei divina. A lei constitucional é feita pelos homens, a partir dos desejos e dos interesses dos cidadãos, das instituições e das associações na base da sociedade.
A democracia brasileira continua a mais frágil da América do Sul, continua sendo democracia tutelada, mitigada.
Por paradoxal que seja, muitas pessoas creem que a nossa democracia está tão sólida que depois de escolher para presidente um defensor do totalitarismo será fácil tirá-lo do poder. É uma espécie de ilusão democrática enfeitiçada, que leva a maioria a transferir a soberania popular para o poder militar.
O sistema político explodiu – em meio a essa explosão continuaremos a lutar por um país solidário, com justiça, democracia, com defesa do seu maior patrimônio, que é o seu povo para quem deve fluir as riquezas nacionais. Ou do caos resultará a paz dos cemitérios de onde nascerá a nova ordem?
Josias Pires é Jornalista e escritor
Artigo publicado originalmente em https://jornalggn.com.br/blog/josias-pires/a-nacao-inconclusa-incapaz-de-superar-a-barbarie
