A Necessidade e o Acaso por Martha Medeiros
é delicada e conduz a uma resposta que confunde mais do que explica.
Sim, a necessidade cria o amor. Sim, o amor existe.
Na verdade, fomos condicionados pela sociedade e seus contos de fada a
acreditar que o amor é uma coisa que acontece quando menos se espera,
que
domina nosso coração, que interrompe nossos neurônios e nos
captura para uma vida de palpitações, suspiros e lágrimas. Que o amor
não tem idade, não
tem hora pra chegar, não tem escapatória. Que
o amor é lindo, poderoso e absoluto, que vence todos os preconceitos,
que vence a nossa resistência e
ceticismo, que é transformador e vital. Esse amor existe e ai de quem se atrever a questioná-lo.
Rendo-me,
senhores. Esse amor existe mesmo, é invasivo e muitas vezes perverso,
mas também pode ser discreto, sereno e indolor. Costuma acontecer
ao
menos uma vez na vida de todo ser humano, ou três vezes, aos 17, 35 e
58 anos, ou pode acontecer todo final de semana, se for o caso de um
coração
insaciável. Mas também pode acontecer nunquinha, e aí a outra verdade impera.
Sim,
a necessidade também cria o amor. A pessoa nasce idealizando um
parceiro para dividir a janta e as agruras, a cama e as contas, os
pensamentos e os filhos. Passam-se os anos e esse amor não sinaliza,
não apresenta-se, e o relógio segue marcando as horas, lembrando que o
tempo voa. Esse ser solitário começa a amar menos a si mesmo, pelo
pouco alvoroço que provoca a sua volta, e a baixa estima impede a
passagem de quem quer se aproximar. É um círculo vicioso que não chega
a ser raro. Qual é a solução: solidão ou imaginação?
O nosso
amor a gente inventa, cantou Cazuza, no auge da sabedoria. A
necessidade faz quem é feio parecer um deus, quem é tímido parecer um
sábio, quem é louco parecer um gênio. A necessidade nos torna menos
críticos, mais tolerantes, menos exigentes, mais criativos. A
necessidade nos torna condescendentes, bem-humorados, otimistas. Se a
sorte não acenou com um amor caído dos céus, ao menos temos afeto de
sobra e bom poder de adaptação: elegemos como grande amor um amor de
tamanho médio. O coração também sobrevive com paixões inventadas, e
não raro essas paixões surpreendem o inventor.