A noite dos jardineiros. Por José Eduardo Agualusa
Há muitos anos, quando ainda trabalhava como jornalista, visitei uma pequena localidade chamada Andulo, no sul de Angola, ocupada pela guerrilha. A cidade onde nasci, Huambo, não fica muito distante.
Alguns dos guerrilheiros haviam sido alunos da minha mãe. Outros conheciam os meus primos. Queriam saber como era a vida em Luanda, onde eu vivia. Estavam interessados sobretudo em conhecer os últimos sucessos musicais. Eu queria saber como estava o Huambo, após ter sido cruelmente bombardeado durante 55 dias pela aviação governamental. No meio da conversa, alguém mencionou o caso de um jardineiro que todos os dias, durante o período em que decorreram os bombardeamentos, saía de casa para trabalhar na Estufa Fria, jardim botânico que era, desde a época colonial, um dos locais emblemáticos da cidade. Pareceu-me que poderia dar uma matéria interessante e perguntei se seria possível falar com o homem. Dois dias depois trouxeram à minha presença um sujeito magro, tímido, com óculos de lentes grossas, que parecia muito frágil frente à bruta escuridão daqueles dias. Cumprimentei-o. Quis saber por que arriscara a vida para ir trabalhar, enquanto as outras pessoas se escondiam em bunkers improvisados, debaixo dos escombros das casas onde antes tinham vivido. Olhou-me espantado, como se a minha pergunta não fizesse sentido algum: “Não havia mais ninguém para tratar das flores.” —disse-me. —“Se eu não fosse trabalhar, as plantas todas teriam morrido.” Não sei o que aconteceu ao jardineiro, mas lembro-me dele sempre que os dias escurecem. Quase todos os grandes heróis que conheci eram pessoas comuns. Os monstros também. Pessoas comuns tendem a revelar sua verdadeira alma — heróica ou monstruosa — naqueles momentos em que o Estado se distrai, colapsa ou assume um perfil totalitário.
Ao longo dos anos que durou a ditadura angolana compreendi também que o que segura a civilização, enquanto a noite se expande, são os gestos simples de heróis comuns: aquele jardineiro arriscando a vida para regar as rosas; o sujeito que avança um passo e diz, “sou eu”, quando a polícia política entra no escritório onde trabalha, perguntando não por ele, mas por um amigo dele; a secretária que recusa os avanços do ministro; o soldado que se nega a torturar o prisioneiro; o radialista que insiste em difundir a canção proibida; o jovem estudante que permanece em silêncio e de braços cruzados, enquanto os colegas saúdam o ditador.
A coragem é muitas vezes invisível. Contudo, é a soma desses pequenos atos de bravura que assegura a sobrevivência da dignidade de todo um povo — ainda que a maioria jamais se manifeste.
“E agora?” — pergunta um jovem, numa charge que corre nas redes sociais. — “Agora vamos fazer poesia.” —Responde a mulher: “Eles odeiam poesia.”
Gosto de pensar que sim, que ditadores e tiranófilos odeiam poesia. Ou melhor: que receiam a poesia, tanto quanto o sonho ou o humor. Porque a poesia, como o sonho ou o humor, é transgressora, irreverente e indomável. Uma ocasião encontrei minha filha do meio estendida no assoalho da sala com duas amigas.
“O que estão a fazer?” —Perguntei. “Sonhamos.” —Respondeu-me a menina. — “Sonhamos juntas.”
Pedi licença e juntei-me a elas.
Ao longo dos anos que durou a ditadura angolana compreendi que o que segura a civilização são os gestos simples de heróis comuns.