Aldeia Nagô
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A pele de Maria Maranhão. Por Jorge Papapá

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Maria Maranhão era uma guerreira dessas que não usam armadura: usava a própria pele. E a pele dela tinha mapas – cicatrizes antigas, marcas de riso, poeira de set de filmagem, perfume de festa, cheiro de tinta fresca e um brilho de quem atravessou o mundo sem pedir licença.

Vinha de longe trazendo uma coragem funda, dessas que não se anunciam. Não tinha medo de salto alto nem de chão batido. Sabia costurar um figurino com a mesma precisão com que costurava amizades: fio por fio, cor por cor, deixando sempre um pedaço dela na trama. Era dessas artesãs que tatuam vidas no tecido, que transformam pano em personagem e personagem em memória.

Era atriz de olhar atento, olho de lâmina, gesto afiado. Ao interpretar Sara, a líder estudantil de Terra em Transe, não representou – ela incendiou. Era como se Glauber tivesse encontrado nela a faísca que faltava para acender a revolução na tela. E no Dragão da Maldade, caminhou pelo sertão como quem reconhece cada dor do mundo e, mesmo assim, brilhava. Pisava a terra como quem sabe que a terra também é mulher, também resiste, também sangra.

Na Bahia, fez morada no coração de muita gente. Chegou como quem desce de um vendaval, trazendo panos coloridos, gargalhada solta e uma ousadia que fazia o tempo abrir caminho. Nas rodas de amigos, ela era o centro, mas não por vaidade – era o centro por gravidade. Todo mundo girava em torno de Maria, como se ela tivesse dentro de si um pequeno sol particular. E ela tinha. Um sol que se acendia quando falava de arte, quando lembrava do boi do Maranhão, quando abraçava alguém com aquele abraço quente que parecia apagar o resto do mundo.

Foi casada com Espiga, grande músico, percussionista. Dividiu vida, palco, casa, rua, música, barulho e silêncio. Dividiu brigas e ternuras, como todo amor que vale a pena. Da União dos dois nasceu Maria Esperança, sua flor mais delicada, sua obra mais definitiva. Esperança: nome que, nela, não era substantivo – era destino.

E Maria bebia, bebia mesmo, mas jamais se perdia. Ao contrário: ficava mais inteira, mais franca, mais divertida, mais mulher. Era como se cada gole tirasse dela um cansaço antigo e deixasse a alma leve, dançando no corpo. Tinha o dom de trasformar mesa de bar em palco, calçada em camarim, madrugada em Espetáculo.

Era também teimosa, brava, amorosa, rápida no perdão e lenta no esquecimento das dores. Guardava histórias como quem guarda pedras preciosas no bolso: algumas pesavam, outras brilhavam. E às vezes, quando contava essas histórias, parecia que a voz dela vinha com vento – vento de sertão, vento de personagem , vento de mar.

Maria Maranhão era dessas mulheres que não passam: atravessam.

E deixam rastro.

E deixam memória.

E deixam perfume no ar, mesmo quando já estão longe.

Era chama, era cena, era canto, era coragem.

Era vida derramada, generosa, barulhenta, inesquecível.

E até hoje, quem fala o nome dela acende uma lâmpada com muito efeito. Uma luz forte como a luz que eu estou sentindo agora, aqui dentro do meu peito.

Jorge Papapá é músico, poeta e escritor

Maria Maranão
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