Aldeia Nagô
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A Praça Castro Alves foiI Notável Invenção do Diabo que Deus abeçoou Rogério Menezes

9 - 13 minutos de leituraModo Leitura

Tinha
algo em torno de vinte e poucos anos, e a seguinte, e
temerária, ideia na cabeça (plano de jerico, pode-se hoje facilmente
deduzir; mas, aos vinte & poucos  anos,  nossa diferença dos
jericos, em alguns casos, e esse era o meu caso, é quase imperceptível):

com copo de cerveja numa mão e quatro ou cinco bolachas cream crakers
na outra, atravessar o mais cego nó do carnaval de Salvador, nos idos
dos anos 1970-1980 – a  praça do Relógio de São Pedro.
Objetivo final: chegar,  superlépido e superfagueiro, ao epicentro
musical, lisérgico, e iconoclástico da folia baiana à época: a
(libertadora) Praça Castro Alves.
Detalhes
que não deverei ocultar, caro leitor: 1) essa travessia foi feita após
ter me afogado em mistura alcoólica pontuada por cerveja, vodca e
uísque; cheirado algumas fileiras de cocaína e esfregado mais certa
quantidade nas gengivas; fumado alguns cigarros de maconha. 2) esse mais
cego nó do carnaval de Salvador de antanho era estreito corredor,
espécie de antessala do possível-simulacro-do-céu que viria a seguir, e
que, como tal, era mix de inferno e purgatório; numa área pequena (de
talvez 200 metros quadrados), e sem nenhuma saída visível a olho
nu, milhares de pessoas empurravam-se, apalpavam-se, mergulhavam em
libidinoso esfrega-esfrega, o que implicava avanços apenas milimétricos,
e resultava em cenas de violência explícita inolvidáveis.
Não
era raro nos anos 1970-1980 que, nesse, digamos,
corredor-da-morte-momesco algumas dezenas de pessoas sucumbissem:
asfixiadas; pisoteadas; baleadas;  esfaqueadas; trituradas; fulminadas
por variantes homicidas de idêntico calibre. Pois bem: foi mais ou menos
às sete da noite (exatamente o horário mais perigoso para atravessá-lo;
no epicentro desse terremoto dionisíaco) que eu, meu copo de cerveja,
minhas quatro ou cinco bolachas cream crackers, e mais dois ou três amigos mergulhamos de cabeça, tronco e membros nessa multidão-areia-movediça.
Hosana
nas alturas: sobrevivemos todos, e chegamos inteiros, sãos e salvos,
sem mácula sequer nos nossos corpos e nas nossas mortalhas – era época
pré-abadás, na qual escondíamos nossos corpos em largos pedaços de panos
coloridos batizados com esse emblemático epíteto. Ao chegarmos no fim
da ladeira de São Bento, nas barbas da Praça Castro Alves, e avistarmos,
enfim, a multidão em transe que, com ou sem trios elétricos,
esbaldava-se sem pejo algum. se beijava com sofreguidão, trocava
carícias dos mais variados calibres, e se afundava em todas as drogas ao
alcance das mãos e das bocas, comi as quatro ou cinco bolachas cream crackers sobreviventes, bebi o copo de cerveja já ligeiramente quente, e beijei na boca os meus três amigos (ou seriam amigas? Who cares?)
O
ponto final desse simulacro de odisséia dionisíaca, a
praça-Castro-Alves-dos-carnavais-baianos-dos-anos-1970-1980 era a mais
completa, e bem-vinda,  materialização de Sodoma e
Gomorra que o planeta Terra conseguiu configurar na segunda metade do
século 20 neste lado de baixo do Equador.  A Aids
ainda não havia aberto suas asas nefastas sobre nós, e podíamos ser de
todo o mundo, pertencer a todo o mundo, e, ao mesmo tempo, não sermos de
ninguém, e não pertencermos a ninguém. A prática ainda em voga de
separar o mundo entre homens & mulheres, gays & héteros
esfarelava-se definitivamente – e eregíamos  templo ao ar livre no qual
mandávamos preconceitos sexuais e morais para, perdão leitor, a puta que
os pariu.
Nutria
esse desvario sexual e comportamental a nossa irrefreável vontade de
nos livrarmos para todo o sempre de trastes assim: 1) famílias amorosas,
mas castradoras, mas limitadoras, mas repressoras, que reproduziam
mecanicamente a moral ortodoxa católica, e que tentavam nos enfiar goela
abaixo que sexo era algo sujo que só conseguia adquirir algum grau de
limpeza quando o praticávamos para procriar, no pouco criativo estilo
papai-mamãe; 2) grupos esquerdoides que babavam nas gravatas e,
basicamente, nas cuecas imundas de crápulas do naípe de Stálin, Lênin,
Fidel Castro, Mao Tsé Tung et caterva, e que que acabaram se
transformando no lado B, na banda podre, de nossas famílias.
Minha
querida mãe, a amadíssima e amantíssima senhora Águida Menezes, que
Deus, ou quem de direito, a tenha em bom lugar, nunca me proibiu pular
carnaval. Enquanto isso, na calada da noite, o grupo de esquerda
ortodoxa ao qual me filiara nos meus tenros 18 anos, me colocara na
parede. Chamara-me para conversar, e proferir severa preleção (e isso me
motivou, entre outras aberrações que não vêm ao caso, a mandá-los à
merda alguns anos depois; dezenas de amigos também agiram dessa forma e
pularam fora dessa nau sem rumo). A preleção era a seguinte: – O carnaval é festa burguesa, portanto proibida.  Achamos mais adequado que o companheiro fique em casa, em segurança, lendo algum livro sobre materialismo dialético.
Intuía
que devia mandar esse companheiro de partido enfiar esse materialismo
dialético naquele lugar, mas contive-me. A boa notícia: de certa forma
me vinguei: não li nenhuma obra sobre ditadura do proletariado.  Preferi
mergulhar nos escurinhos dos cinemas do centro de Salvador, e ver
filmes, muito filmes – e, se não me falha a memória, aproveitei a
oportunidade para protagonizar algumas cenas de sexo fortuito entre cena
e outra de algum filme de Michelangelo Antonioni,  ou de Luis Buñuel.
Ou
seja: em meados dos anos 1970, vivíamos entre a cruz e a espada.
Corríamos, mas o bicho nos pegava: tentávamos escapar da familia
repressora e caíamos em garras ainda mais afiadas e pérfidas, e nos
chafurdávamos em grupelhos de esquerda mais obscuros ainda.
Quem
quiser que conte outra, mas, para mim, foram os
seguintes ingredientes que fizeram germinar e borbulhar aquela
absolutamente libertadora Praça Castro Alves dos anos 1970-1980:

1)
A necessidade vital de nos desgarrarmos das asas superprotetoras de
nossas famílias (que nos amavam profundamente, mas que também nos
tolhiam profundamente).

2)
O desejo igualmente vital de nos de nos desalinharmos de certa esquerda
ortodoxa que nos cooptou assim que nos livramos das asas protetoras dos
nossos pais, e que, com sectarismo notável, nos fez sentir saudades das
asas protetoras de nossos pais.

3)
O mundo ao redor cada vez mais libertário, anárquico,
lisérgico, liberal, iconoclasta, no qual pontificavam, entre muitos
outros, heróis libertários do naipe de Elvis Presley, Little Richard,
Mick Jagger, Janis Joplin (lá fora), e (aqui no Brasil)  os Dzi Croquetes, Nei Matogrosso (andróginos fulltime) e Caetano Veloso (sim, o hoje senhorial Caetano Veloso já foi ícone do mau-mocismo libertário pátrio; ´gosto muito de te ver leãozinho´
pode ter ajudado a tirar muita gente do armário. (É sempre bom lembrar
que foi ele, quem, inspirado em  pichações murais de
Paris-maio-68, berrou a palavra de ordem de toda essa santa desordem
dessa minha nada santa geração: é proibido proibir).
Proibido
proibir se tornou o mais emblemático mantra da Praça Castro Alves dos
anos 1970-1980. Quanto mais iconoclastas fôssemos mais felizes seríamos,
pensávamos – e fomos muito iconoclastas, e fomos muito felizes. Durante
mais de uma década, limitados a leste pela estátua passiva do poeta
Castro Alves (eventualmente sodomizada por bêbados mais exaltados), ao
sul pelo Palácio dos Desportos, e a leste pelo então Cine Guarani (hoje
Espaço Unibanco Glauber Rocha), a cobra fumava (maconha), bebia, e
cheirava, e nós todos, solidários, a imitávamos.
A
quantidade de fatos de natureza felliniana que presenciamos, e que
protagonizamos, na Praça Castro Alves dos anos 1970-1980 era
estonteante. Tratava-se de espetáculo coletivo no qual
éramos protagonistas e espectadores, palco e platéia, homens e mulheres,
gays e heterossexuais. Nada parecia nos diferenciar – e, de fato, nada
nos diferenciava.
Nessa
praça Castro Alves em eterno transe, difícil lembrar esse ou aquele
personagem que mereça destaque (éramos todos destaques; a ideia era
exatamente essa: sermos completamente livres de todas as caretices
vigentes, e ocuparmos espaços e mostrarmos o que realmente éramos, sem
familiares ou esquerdoides a nos torrar a paciência). Mas talvez
eu, perene e incansável testemunha ocular dessa história, possa citar, noblesse oblige,
o nome de certo personagem argentino que pairou sobre Salvador, em
geral, e pela Praça Castro Alves, em particular nesse período de tons
fortemente dionisíacos.
Chamava-se
Fernando Noy (e talvez ainda se chame; há informações extra-oficiais de
que ele sobreviveu ao tsunami que nos abateu a partir dos anos 1990, e
continua vivo e forte em Buenos Aires). Foi predecessor do que podemos
chamar homem-mulher-evento (mercadoria barata hoje em dia, quando
mulheres-frutas dão o tom e se vendem a preço de xepa Brasil afora).
Em coluna que escrevia à época em jornal de Salvador, o Correio da Bahia, alcunhei-o de ´pombagira portenha´. Tornamo-nos
amigos, os amigos possíveis. Mesmo nos meus anos loucos, era difícil
ser amigo de figura tão extraordinariamente frenética e tão
extraordinariamente heterodoxa. Lembro de certa tarde de domingo de
carnaval na qual ele ligou da portaria do prédio onde eu então morava,
na Ladeira da Fonte, no Campo Grande. Estava aos prantos, e berrava, num
portunhol muito peculiar: 

Rorélio, Rorélio, querido, acuda-me! Abandornaram-me. Mis hombres mi
abandonaram. Estoy solita e desesperançada. Tu me consolas, cariño?
Ainda
emergia de farra monumental do dia anterior, e tive de ser cruel:
fingi-me de surdo. Desliguei o interfone, tranquei-me no quarto, e
voltei a dormir. Com alguma culpa, admito. Mas o sono matou a culpa, e
não pude (nem quis) resolver o problema afetivo da ´pombagira portenha´.
Mas a ´pombagira portenha´sobreviveu,
e sobreviveu galhardamente. No dia seguinte, ao cair da tarde,  –
quando gays do Brasil inteiro se empoleiravam na escadaria do Palácio
dos Desportos, numa espécie de desfile em free style 
(todas, montadíssimas, inventavam formas criativas de atrair a multidão
que se esgoelava pelas cercanias) – eu avistei Fernando Noy.

Sendo
mais exato: eu avistei a bunda flácida, branca e gorda de Fernando Noy
resplandecer magnificamente sob o sol (já pálido do final de tarde) do
novo mundo.

Usando de
certa força física (ele não era exatamente longilíneo, ou
fracote), conseguiu ocupar o espaço central da escadaria. Em seguida, 
rodopiou feito perua bêbada, a bordo de longo e amplo traje de vaga
inspiração inca em tons multicores. De repente, não mais que de repente,
deu as costas para a platéia e exibiu as alvíssimas nádegas barrocas.
Resultado: delírio e frenesi totais entre a plateia-multidão alucinada, e
que se alucinava ainda mais por causa da chegada de trio elétrico
comandado pela hiper-mega-super-alucinantemente-louca-Baby Consuelo
despontando no finalzinho da Rua Chile.
Perdão,
homens e mulheres que beijei sem sequer saber-lhes os nomes; perdão,
parceiros de cenas de sexo fortuito ou nao fortuito; perdão, amigos que
me enfiaram pontos de ácido goela abaixo, ou que surgiram do nada e
me oferecaim ´baseados´ salvadores; perdão, inesquecíveis e viscerais
Babys Consuelos, Caetanos Velosos, e Morais Moreiras que balançaram o
chão da praça e e me fizeram crer que o céu, se existisse, era ali e
naquela hora.

Mas
devo admitir, caro leitor: minha lembrança mais arrebatadora e
imorredoura da Praça Castro Alves dos anos 1970-1980 é exatamente essa ´pombagira portenha´
intitulada Fernando Noy. Mais exatamente no momento em que
ele/ela rodopia no alto da escadaria do Palácio dos Desportos tal e
qual uma perua bêbada e drogada, e escancara para a multidão em transe a
enorme bunda branca, flácida, e gorda.

Perdão pelo sacrilégio (mas podemos, e devemos, ser sacrílegos em períodos carnavalescos): – Deus salve a bunda branca, flácida e gorda de Fernando Noy.


Publicado originalmente em http://olobonoarriodejaneiro.blogspot.com/
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