Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

A produção da crença e a Greve Gera, Por Geraldo Prado

11 - 15 minutos de leituraModo Leitura
Geraldo_Prado

1. Em noventa minutos, na tarde de ontem, testemunhei o poderoso processo de construção de uma versão pela mídia. Havia combinado acompanhar os juízes do trabalho à Cinelândia, às 17h, para participar das manifestações contra as reformas trabalhista e da previdência.

Encontro marcado às 17h, nos fundos do prédio do TRT, resolvi ir até a Livraria da Travessa porque cheguei mais cedo ao centro do Rio de Janeiro.

Estava na porta da livraria, na Rua 7 de Setembro (primeira ironia do destino), quando vi um grupo de manifestantes se aproximar. Vinham cantando e empunhando cartazes pela liberdade de Rafael Braga.

Me aproximei e comecei a filmar. Era uma festa democrática. Postei no Facebook porque percebi a importância de registrar o momento e segui com o grupo na direção da Praça XV.

Na altura do prédio da Universidade Cândido Mendes (UCAM) notei o grande movimento na rua da Assembleia. Me afastei do primeiro grupo e caminhei na direção das pessoas que estavam indo para a grande aglomeração que protestava em frente à Assembleia Legislativa.

Novamente é necessário deixar claro que se tratava de uma festa plural, democrática, rica em diversidade, bem diferente de “um punhado de sindicalistas inconformados com o fim do imposto sindical”, como irresponsavelmente está sendo propagado mesmo por pessoas muito sérias.

Ao chegar ao prédio da UCAM me posicionei no alto das escadas e fiz novas fotos de uma festa que transcorria na mais absoluta normalidade. Na mesma hora postei as fotos no FB. As legendas do primeiro filme e das fotos trazem algumas das palavras de ordem das duas manifestações.

Fiquei muito impressionado com o fato de a locutora, cuidadosamente, informar o que fariam a partir daquele momento.. Ela disse que, conforme estava acordado com as autoridades, eles sairiam da Assembleia na direção da Candelária e de lá caminhariam até a Cinelândia. Pediu que não houve dispersão ou qualquer movimento que pudesse ser interpretado como fugindo ao combinado.
E começou o movimento de pessoas no sentido da Candelária. Era muita gente, em grande maioria mulheres, pessoas idosas, muitos jovens… A grandeza numérica da manifestação me chamou atenção e resolvi me posicionar melhor para voltar a filmar.
Neste momento ouvi as primeiras explosões das bombas atiradas contra os manifestantes, que começaram a correr desesperadamente, agora para a rua da Assembleia.
Os seguranças da UCAM também foram surpreendidos e ficaram assustados com o ataque indiscriminado aos manifestantes. Voltei a subir as escadas e imediatamente iniciei a segunda filmagem, indignado porque a essa altura os disparos eram efetuados contra as pessoas que corriam, pelas costas, quase sem intervalo.
Vi idosos e idosas com dificuldade para fugir dos efeitos da enorme fumaça de gás de pimenta que se formava. Parei de filmar e comecei a ajudar, juntamente com os seguranças da UCAM, as pessoas que estavam atordoadas pelos efeitos das bombas de gás de pimenta.

Homens e mulheres de todas idades tinham enorme dificuldade para subir os poucos lances de escada e ao chegar ao pátio interno da Faculdade caiam, espalhados, assustados, muito assustados, e sofrendo as tonturas e ardência interna provocadas pelo gás que se espalhava.

Fiquei tonto… também comecei a sentir o efeito do gás inalado. As pessoas formavam rodas, tiravam lenços e as próprias camisas para cobrir o rosto e tentar parar de respirar a pimenta… compartilhavam água e azeite… foi o que me permitiu recuperar o equilíbrio e postar os dois vídeos seguintes no FB, o primeiro deles por engano, gravado quando eu já estava tonto.

Embora mais espaçados, os disparos de bombas na direção da rua da Assembleia prosseguiam, tornando impossível fazer a travessia por ali, para ir para o TRT, perto da Cinelândia. A região tornou-se sítio de trânsito proibido.

Os seguranças da UCAM recomendavam às pessoas que deixassem o prédio pelos fundos, na altura da rua 7 de Setembro. Confesso que não tenho ideia de onde foi parar o senhor de muletas que é visto no vídeo tentando fugir da agressão.

Na esquina da 7 de setembro com Travessa, em frente ao prédio da Procuradoria do Estado, havia uma patrulha da PM estacionada. Os policiais respondiam às pessoas que eles não podiam fazer nada.

Consegui atravessar a rua da Assembleia perto da Av. Rio Branco e quando passei pelo Buraco do Lume vi que pessoas corriam assustadas pela Rio Branco.
Cheguei ao TRT, onde encontrei alguns juízes do trabalho, relatei o ocorrido e decidimos seguir em direção à Cinelândia. Com a correria na Rio Branco e novas bombas explodindo nas proximidades, nos dividimos e me afastei do Teatro Municipal.

O relato no FB do Desembargador Corregedor do TRT, José Jose Nascimento Araujo, logo em seguida, dá a dimensão do que ocorreu ali. As notícias de outras agressões chegavam em uma enorme velocidade. Consultei o “O Globo on line” e minha indignação aumentou ainda mais.

Em evidente alteração da cronologia e distorção do contexto, a notícia de capa daquele momento, fotografada por mim, invertia a ordem dos acontecimentos.
Ainda estava no calor dos fatos e pensei que minha melhor maneira de ajudar a resgatar a verdade seria divulgar o que presenciei.

Com mais calma agora buscarei colocar os episódios em perspectiva e proceder à análise, que naturalmente se contrapõe à “história oficial”. Triste tempo dos tiranos, em que não há como recolher e banir os panfletos da história contada pela ótica dos que sofrem os abusos.

Hoje, como destaca Castells, o “mimeógrafo” é digital e a difusão pela rede mundial de computadores é imediata. As pernas curtas da mentira ficam à vista mais rapidamente.

2. O ensaio, “a produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos” (3ª ed. Porto Alegre: Zouk, 2014), marca uma passagem importante da trajetória de Pierre Bourdieu.

Na apresentação da obra, Maria da Graça Jacintho Setton sublinha a sensibilidade de Bourdieu para desnudar, no campo da teoria social, o fato de a mídia constituir instância de produção da crença, pois impõe, como a família, “homeopaticamente, um sistema integrado de referências e padrões identitários” (p. 11).
Bourdieu clarifica o caráter político da constituição dos bens simbólicos e trata daquelas pessoas e entidades portadoras do capital social para instituírem a “verdade” das suas versões (visões parciais da realidade), valendo-se da competência para “fazer irreconhecer os interesses em jogo em sua prática” por meio de recursos orientados à “obter os ganhos do desinteresse” (p. 20).

Para o sociólogo, que inicia a análise pelo comportamento de atores no campo da arte contemporânea, não se trata de denegação ou mera dissimulação do real interesse em jogo. Há uma estratégia relevante por meio da qual a pessoa ou entidade confere a si própria uma “autoridade” aparentemente neutra para decidir sobre valores socialmente apreciados (e indiretamente consumidos).

Assim funciona a mídia. Suas imagens, organizadas cronologicamente na ordem que interessar ao editor e para atender aos fins econômicos e políticos que “não se fazem reconhecer”, são expelidas e repetidas tantas e tantas vezes até dominar a narrativa.

O primeiro derrotado nesta ação é o juízo crítico. No caso da greve geral de 28 de abril de 2017, a vitória da versão manipuladora é facilitada por muitos fatores de natureza estrutural, que se combinam de diferentes maneiras.

Boa parte das pessoas que internalizam e tomam como seus os entendimentos acerca do sentido de uma greve geral, a indiscutibilidade da evidência das imagens transmitidas por redes de tv privadas e a neutralidade das narrativas produzidas neste mesmo contexto, inclusive sobre os motivos e participantes das manifestações, forjaram seu modo de ver o mundo durante a última ditadura (1964-1985) ou sentiram os efeitos da tecnocrática reforma do ensino do fim dos 70, que apenas parcialmente começa a ser revertida no segundo governo FHC e depois, com maior ênfase, nos governos do PT.

A ideologia da “ordem”, “da pacificação”, do “pensamento homogêneo”, tipicamente autoritária, cativa mentes e discursos. Até a maneira de falar tende a ser agressiva, impositiva, em uma recusa obstinada a ouvir o que contraria seu sistema de valores e numa forma de se pronunciar que interdita o diálogo.
O pensamento primário coloniza a mente. As pessoas “devem ser ordeiras para serem consideradas bons cidadãos”. Qualquer perturbação da ordem, independentemente da razão, é mal vista… subversivos emergem nas mentes treinadas a obedecer sem refletir como “inimigos” a serem duramente reprimidos porque não respeitam a ordem.

Não se pode negar o “bom trabalho” do regime empresarial-militar de 64. Educar sem escolas e professores, apenas com base em slogans e enredos de telenovelas… formar uma ampla visão de mundo e difundir globalmente a obediência servil como forma ideal de cidadania, são “méritos” indiscutíveis porque, encerrado o ciclo ditatorial, a censura à crítica, a proibição da divergência e do conflito agora já são estruturas identitárias desse/dessa brasileiro/a submisso que ocupa importantes espaços no âmbito da sociedade, em todos os seus níveis.

O processo mental de instituição da identidade “não conflitante” (vamos chamá-la assim) passa, por exemplo, por sublimar a histórica resistência dos escravos, vista como violenta e irracional, substituindo-a pela “abolição concedida” pela rainha branca aos “novos súditos”.

As “revoltas republicanas” que antecederam a independência e a república são tratadas à “distância histórica segura”, de sorte a não inspirarem espasmos de irresignação e insurgência.

A história das greves, de relato da conquista de direitos, converte-se em “tempos de violência” e “incrimina” seus personagens. Os “anarquistas” do passado são os “petralhas” dos nossos dias. Lá como cá a história não resultou apenas das ações de uns e outros, mas o encobrimento ideológico da verdade produz a crença de que sim.

A violência mesma, como defesa contra abusos – escravidão e todas as formas brutais de exploração – é ela própria demonizada. A violência dos agentes do Estado, por sua vez, é tratada como meio necessário de “restauração da ordem” e comemorada como uma espécie de “vitória contra os insurgentes” (sequer tratarei aqui do “gozo” causado pela perversidade, mas somente não farei isso por questão de espaço).

O sentido republicano dos limites ao exercício de poder, o dever de conter os abusos e o de investigar os abusos praticados por agentes do Estado são imediatamente substituídos por uma solidariedade orgânica que, automática, “impõe” a prevalência de uma narrativa de justificação da violência de Estado.
O encontro dos interesses “irreconhecidos” termina por ocorrer nesta improvável esquina entre as subjetividades “de lei e ordem” de muita gente de todas as classes e a ganância econômica defendida por setores da mídia.

O que faz a mídia corporativa – e ontem fez isso às escâncaras – é apenas “organizar” a ordem dos fatos que compõem um relato que boa parte da sociedade em realidade espera “ouvir”

Por fim, e como parte deste processo, naturalizam-se os questionamentos acerca dos fundamentos éticos das manifestações. Indaga-se: quem são estes “manifestantes”?; que “interesses inconfessáveis” se dispõem a defender?; eles têm razão em suas reivindicações?

Tudo isso como se a resposta a estas questões fosse decisiva para legitimar o direito de manifestação e como se a greve não fosse um fato social perturbador por excelência porque tem o propósito de turbar uma ordem econômica que um grupo de pessoas considera injusta. A ignorância sobre o que é “greve” transforma-se em um “novo saber” e comparações incabíveis ironizam a luta dos trabalhadores. [Falei sobre isso no prefácio à 2ª edição do belíssimo livro do jurista Christiano Fragoso, neto de Heleno Fragoso, “Repressão Penal da Greve”].

Dois aspectos saltam aos olhos:
a) a supressão do juízo crítico relativo à “verdade da mídia” desaparece quando são seus próprios interesses em jogo (hoje mesmo os jornais deram ampla divulgação a salários e indenizações pagos por tribunais a magistrados em valores superiores ao teto constitucional, sem todavia o devido esclarecimento das verbas a que se referem, colocando em posição delicada e injusta muitos dos que ontem absorveram passivamente a versão midiática de que os manifestantes eram “sindicalistas revoltados por perder suas vantagens”);
b) ao pretenderem desqualificar o “mérito” das paralisações – como se fosse necessário consenso alargado a respeito dos temas de uma manifestação para legitimar atos do gênero em uma sociedade desigual – ignoram farto conjunto de opiniões técnicas, emitidas por pessoas que, a considerar o parâmetro citado, são porta-vozes autorizados no seu campo. A desqualificação dos motivos em geral resulta de entendimentos fracionados e superficiais sobre as questões envolvidas. Falta base para o debate, mas também aqui tenho como indiscutível o direito de se “debater” confiando apenas na convicção do próprio argumento.
Há no entanto um receio, consciente ou não, em reconhecer com sinceridade que as medidas de austeridade, revogando direitos e alterando as condições de sua execução – como as que blindam os patrimônios dos devedores, perspicaz defesa de interesses privados promovida na Câmara dos Deputados – devem ser aplicadas porque são importantes para o capital, ainda que ao custo de inviabilizar a existência de parcela expressiva da nossa população. É um ponto de vista.

3. Entre 1995/97, na qualidade de professor de processo penal, fui consultor no âmbito de uma investigação dirigida pelo saudoso Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, no Instituto Carioca de Criminologia (ICC).

Tratava-se de um projeto de interesse da Fundação Ford. A edição e publicação de Manuais de Polícia com ênfase em Direitos Humanos.
Cabia a mim tão-somente colaborar com o Manual Polícia e Infância e Juventude. No entanto, quando iniciamos a troca de ideias, o Coronel Cerqueira e eu, fiquei impressionado com outro Manual que ele estava elaborando: Manual de atuação da Polícia em Manifestações e Eventos.

Na oportunidade descobri pelas mãos do Coronel Cerqueira que havia vasta bibliografia disponível no exterior sobre o tema da atuação cidadã da Polícia em manifestações de toda ordem… das partidas de futebol às greves.

Que papel caberia à Polícia nestes contextos, como proteger os manifestantes (torcedores ou grevistas), como agir para prevenir e cirurgicamente reprimir abusos dos manifestantes, como lidar com aglomerados de pessoas em situação de distúrbio.

Tratava-se, volto a dizer, de meados dos anos 90. Duas décadas se passaram e a ação de ontem, fartamente documentada, desprezou por completo as regras elementares deste tipo de intervenção, regras que também estão dispostas para proteger os policiais, física e juridicamente.

Não vejo como filiar, no plano da causalidade, as ações de depredação de vidraças e incêndio de ônibus à ação original da polícia nas proximidades da ALERJ. Não testemunhei os demais fatos e não tenho elementos para afirmar tratar-se de reação à agressão policial ou se estavam planejados, independentemente da postura que viesse a ser adotada pela polícia.

Mas me causa estranheza uma reação brutal de uma polícia estadual – de parte dela, obviamente – a manifestações cujo foco transcendia o Estado do Rio de Janeiro. Apesar das justas e inevitáveis críticas ao governo local, o foco era a irresignação no tocante às reformas nacionais, trabalhista e previdenciária.

Penso que a reiteração dessas violações aos diretos humanos, que surgem de modo marcante em 2013, e a antecipação de juízo de justificação do abuso por parte de autoridades locais que deveriam se preservar e aguardar a apuração dos fatos, no mínimo deve levar à reflexão sobre se não é o caso de se proceder à investigação em nível federal, haja vista a federalização da tutela dos direitos humanos.

É uma ideia. Ela ganha força, no entanto, quando junta ao conhecimento de que o Rio de Janeiro é uma espécie de “vitrina nacional” explorada pela grande mídia brasileira. Os efeitos de uma distorção da narrativa ancorada em episódios de violência no Rio interessam aos defensores “desinteressados” da austeridade e de um governo reprovado pela imensa maioria da população.

Uma investigação a cargo da PF e com a atuação do MPF pode, por exemplo, ter o êxito que as investigações federais parecem ter obtido relativamente a casos de corrupção que as autoridades locais não tiveram a competência de observar.

Não estou seguro da hipótese da federalização, mas estou convicto de que a agressão que testemunhei serviu de estopim para uma narrativa ao gosto das melhores tradições autoritárias: pobre intelectualmente, mas parcialmente eficaz do ponto de vista político.

Se a narrativa midiática não vingou como muitos esperavam isso se deve à reação cidadã, via rede mundial de computadores (internet).”

Geraldo Prado é desembargador do Estado do Rio de Janeiro

Compartilhar:

Mais lidas