A revanche tem cara de mulher: com tiranos não combinam amorosos corações. Por Edlamar França
Arquivo publicado originalmente no Brasil de Fato
Dias estranhos de torpor diante de horrores que aconteciam numa Câmara do Planalto produziram gases tóxicos poluentes de um ar democrático. Dias assim roubam a nossa alegria e vontade de criar, a expressão fica contida, o céu fica cinzento. Ainda assim, a gente se levanta em meio ao caos e faz e tenta fazer o que precisa ser feito.
Por este chão rendemos glórias às mulheres e homens combatentes que se levantaram contra a tirania da escravidão, dos déspotas, ditadores, traidores da nação. A independência do Brasil começou na Bahia. 2 de Julho marca o ápice das revoltas e o anúncio de um sol da liberdade em raios fulgidos nesta terra garrida.
Dias memoráveis merecem registros e escrevo com o coração aquecido. Depois de dias acompanhando notícias abatedoras de qualquer esperança nos corres da rotina, eis que um dia de domingo faz brotar a revanche nas ruas, para que eles vejam. Essa massa fétida de brancos e bandidos que ocupam o Congresso e tentaram enfiar goela abaixo a PEC da bandidagem e da anistia para golpistas. Uma mulher povoada se levanta com milhões de assinaturas. Nossas gargantas inflamadas pelas vozes contidas cuspiram fogo pelas ruas e queimaram a segurança delirante destes facínoras. Os ventos da orla dessa cidade beijavam as nossas faces e braços dançantes, enquanto dávamos o nosso recado em alto e bom som de um trio elétrico.
Na cidade de Salvador, cuja Câmara Municipal já foi um dia cadeia, lugar de prisão e açoite de pessoas negras escravizadas, que emparedou os revoltosos de Búzios em seus porões, era também onde os algozes decidiam seus privilégios no salão nobre. Depois de banirmos o regime escravocrata e colonial, esta Câmara ainda assenta inimigos do povo, que encarnam os fantasmas de sistemas vis. Vampiros tentam caçar injustamente o mandato do vereador Hamilton Assis, outros manchar a hombridade e reputação de vereança que tem fé na gente e ainda assustar parlamentares aguerridas.

Mas este ano é de Xangô e de Yansã, e com as forças da natureza não se brinca. Foi numa quarta-feira que outra revanche se deu. O vereador Sílvio Humberto, quando fundou junto com outros companheiros e companheiras o Instituto Steve Biko, cursinho pré-vestibular para pessoas negras, acreditava no poder transformador da educação. Não sei se esperava um dia ser o autor de mais um dia de revanche. Como flecha certeira da história e da justiça, com a alegria de um Erê, entregou a Comenda Maria Quitéria, personagem importante das batalhas pela independência da Bahia e do Brasil, à Doutora Carla Akotirene. Uma filha de Oxum, merecidamente reconhecida como uma das intelectuais mais importantes de nosso tempo que nos entrega seus estudos sobre interseccionalidade e sistema prisional como oferendas que nos auxiliam a compreender a trama complexa de uma sociedade estruturada pela raça, classe e gênero.
Uma mulher negra que entra pela porta da frente do salão nobre da Câmara dos Vereadores da cidade mais negra fora de África, povoada por gentes e histórias, acompanhada de seus familiares e do cortejo majestoso do Ilê Ayê, para receber honrarias neste dia. Ali nos vimos em comunidade ancestral celebrando. Assim como todos e todas naquele salão testemunhavam um feito em festa, nossos antepassados que por ali passaram também estavam, por entre aquelas paredes que resistiram ao tempo e ainda testemunham conchavos contra nossa gente. Seus espíritos continuam entre nós lutando para que dias como estes, de glória, sejam sonhos possíveis de saborear. Saúdo a todos vocês, homens e mulheres de ontem que corajosamente lutaram para que nós pudéssemos estar aqui e ver essa história acontecer hoje. Saúdo às mulheres corajosas de amar porque geram vidas nos ventres da história.
Oxum não teme à guerra, suas armas são as águas que também levam bolinhos de fazer inimigo dormir e não é para sonhar. Que os girassóis anunciem a primavera brasileira, Palmares renascerá de novo e a revanche tem cara de mulher!
Editado por: Lorena Andrade
Edlamar França
Natural de Salvador-Bahia, Graduou-se em Psicologia, é psicanalista em formação pela Escola de Psicanálise Après Coup (POA); Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua na clínica com psicoterapia na perspectiva da Psicanálise Amefricana. @edlamarfranca
