Aldeia Nagô
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A transfiguração de Ingrid Betancourt por José Nêumanne

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura

No começo do século passado, o stalinismo cunhou a máxima do pragmatismo
socialista de que "os fins justificam os meios". Milhões de camponeses russos
morreram de fome, sacrificados em nome desse conceito atroz. Passada a primeira
metade do século da cibernética e da mecatrônica, a era da comunicação
massificou o lema do sociólogo canadense Marshall McLuhan segundo o qual "o meio
é a mensagem". Neste despontar do século 21 essas palavras de ordem do passado
se submetem a outra muito mais radical, banal e fria: na globalização, submetida
a velha política ao moderno marketing, "os meios são o fim". Esta será a
impressão que terá o transeunte que, à saída da ópera no Teatro Alla Scala, em
Milão, observou há dois meses a fotografia da exangue e desvalida refém das
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) Ingrid Betancourt e pode agora
compará-la com os flagrantes da plena, corada e risonha higidez de sua
libertação.


O milagre da transfiguração da imagem da refém-símbolo dos
guerrilheiros das selvas colombianas pode ter sido conseguido por um programa de
computador com nome inglês que transforma mocinhas bonitas em símbolos sexuais
irresistíveis – só que com objetivo oposto. Será difícil comprová-lo algum dia.
Assim como fácil não será atestar que nosso compatriota José Dirceu nunca foi
submetido a uma alegada operação plástica que o teria enfeado para depois passar
por outra que lhe devolveu as feições originais, embora não mais com o viço que
fazia as mocinhas do Sacré-Coeur tremer dentro dos vestidos, como na canção Rua
Ramalhete, de Tavito e Ney Azambuja. O certo é que, sob o domínio dos meios de
comunicação, não é mais possível extrair desafetos de flagrantes históricos,
como fazia Stalin com os bolcheviques da Velha Guarda que expulsava da via para
o socialismo num só país. Mas é comum apelar para efeitos iconográficos com a
intenção de reforçar algum aspecto heróico da personalidade de uma personagem
pública para mitificá-la. Vivo, Che Guevara encarnou o ideal romântico dos anos
60 com seu aspecto de anjo hirsuto no instantâneo de Alberto Korda. Morto, o
ângulo da foto similar ao do Cristo de Mantegna o fez jovem para
sempre.

Agora os tempos são outros. Ao contrário do médico argentino
executado nas brenhas bolivianas, Manuel Marulanda, o Tirofijo, morreu velho na
cama e não mais chefiando um grupo de idealistas querendo salvar o povo
desvalido do capitalismo selvagem. O contraste com a imagem do herói de Sierra
Maestra era tal que nem seu mais notório padroeiro, o vizinho Hugo Chávez,
permaneceu do lado do pesadelo da transformação dos heróis revolucionários em
vilões que vegetam nos ermos tirando o sustento da comercialização de cocaína e
de vidas humanas mantidas em cárcere privado.

Ingrid Betancourt
freqüentou esse inferno por excesso de cálculo político. Senadora e candidata de
um partido insignificante à presidência de uma República de longa tradição
democrática, praticamente se deixou seqüestrar para constranger o adversário no
governo e o favorito na eleição. Eleito e reeleito, Álvaro Uribe tornou-se seu
salvador para, logo depois, voltar a ser o alvo preferencial de suas críticas e
farpas. Não interessa se a foto da pobre mulher desvalida era autêntica ou
retocada: ela tirou essa política do anonimato e a tornou iluminada no universo
de brilhos da Galáxia de Gutenberg. Afora o transeunte curioso da Praça Leonardo
da Vinci, em Milão, poucos perceberão a diferença entre o flagrante do desamparo
e as faces louçãs da política resgatada – do acampamento infecto para os salões
da moda, dos maus tratos no cativeiro para o afeto público do presidente da
França.

Só na aparência as duas mulheres são diferentes. Na verdade, são
uma só: se não fosse a mater dolorosa das selvas, a protagonista de fino trato
na cena política nem existiria. Ingrid Betancourt deixou de ser prisioneira do
desespero de um grupo que não tem mais o que fazer na cena da história para se
tornar refém do marketing que ela própria construiu na preparação e depois no
martírio do cativeiro contra o qual o mundo civilizado se rebelou.

Tolice
cobrar da nova protagonista do jet set político internacional gratidão pelo
homem que a libertou. Afinal, o presidente Álvaro Uribe não o fez por caridade
ou simpatia, mas por mero e idêntico cálculo político. Saiu do episódio, com
justiça, como o herói que resgatou a refém mais importante do mundo sem negociar
com seus raptores, que era o que todos pretendiam – entre estes, a família dela
e os trapalhões da esquerda continental que compareceram ao picadeiro do circo
mambembe armado por Hugo Chávez na frustrada libertação de outros prisioneiros,
anteriormente. E suas chances de mudar a regra constitucional para disputar o
terceiro mandato consecutivo aumentaram muito com a operação. Melhor para ele.
Só que na velha democracia dos barões ingleses e dos pais fundadores da
Revolução Americana não há almoço grátis, como dizia Milton Friedman, o papa da
turma de Chicago. A conta que ele tem a pagar é a mãozinha dada para a
candidatura da ex-refém, que pode derrotá-lo.

Para Ingrid, para Uribe e
para a civilização, o resgate na selva em que os experimentados guerrilheiros
foram feitos de bobos tem um resultado que ultrapassa e transcende o mero
oportunismo político, de que os dois protagonistas da próxima disputa eleitoral
na Colômbia são acusados pelo escritor Fernando Vallejo, de Medellín. Pouco
importa se as Farc sobreviverão aos golpes que lhes têm sido aplicados pelo
Estado de Direito colombiano. Em seus acampamentos agoniza um dos mais sórdidos
inimigos da velha e boa democracia: a glamurização do banditismo como forma de
luta política. Só um tonto ainda vai cair nesse conto.

José Nêumanne,
jornalista e escritor, é editorialista
do Jornal da Tarde

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