A Tristeza Permitida por Martha Medeiros
Se eu disser pra você que hoje acordei triste…..
que foi difícil sair da cama, mesmo sabendo que o
sol estava se exibindo lá fora e o céu convidava para a farra de viver,
mesmo sabendo que havia muitas providências a tomar, acordei triste e
tive preguiça de cumprir os rituais que normalmente faço sem nem
prestar atenção no que estou sentindo, como tomar banho, colocar uma
roupa,ir pro computador, sair para compras e reuniões – se eu disser
que foi assim, o que você me diz? Se eu lhe disser que hoje não foi um
dia como os outros, que não encontrei energia nem para sentir culpa
pela minha letargia, que hoje levantei devagar e tarde e que não tive
vontade de nada, você vai reagir como?
Você
vai dizer "te anima" e me recomendar um antidepressivo, ou vai dizer
que tem gente vivendo coisas muito mais graves do que eu (mesmo
desconhecendo a razão da minha tristeza), vai dizer para eu colocar uma
roupa leve, ouvir uma música revigorante e voltar a ser aquela que
sempre fui, velha de guerra.
Você
vai fazer isso porque gosta de mim, mas também porque é mais um que não
tolera a tristeza: nem a minha, nem a sua, nem a de ninguém. Tristeza é
considerada uma anomalia do humor, uma doença contagiosa, que é melhor
eliminar
desde o primeiro sintoma. Não sorriu hoje? Medicamento. Sentiu uma
vontade de chorar à toa? Gravíssimo, telefone já para o seu psiquiatra.
A
verdade é que eu não acordei triste hoje, nem mesmo com uma suave
melancolia, está tudo normal. Mas quando fico triste, também está tudo
normal. Porque ficar triste é comum, é um sentimento tão legítimo
quanto a alegria, é um registro da nossa sensibilidade, que ora
gargalha em grupo, ora busca o silêncio e a solidão. Estar triste não é
estar deprimido.
Depressão
é coisa muito mais séria, contínua e complexa. Estar triste é estar
atento a si próprio, é estar desapontado com alguém, com vários ou com
si mesmo, é estar um pouco cansado de certas repetições, é descobrir-se
frágil num dia qualquer, sem uma razão aparente – as razões têm essa
mania de serem discretas.
"Eu
não sei o que meu corpo abriga/ nestas noites quentes de verão/ e não
importa que mil raios partam/ qualquer sentido vago de razão/ eu ando
tão down…". Lembra da música? Cazuza ainda dizia, lá no meio dos
versos, que pega mal sofrer. Pois é, pega. Melhor sair pra balada,
melhor forçar um sorriso, melhor dizer que está tudo bem, melhor
desamarrar a cara. "Não quero te ver triste assim", sussurrava Roberto
Carlos em meio a outra música. Todos cantam a tristeza, mas poucos a
enfrentam de fato. Os esforços não são para compreendê-la, e sim para
disfarçá-la, sufocá-la, ela que, humilde, só quer usufruir do seu
direito de existir, de assegurar o seu espaço nesta sociedade que
exalta apenas o oba-oba e a verborragia, e que desconfia de quem está
calado demais. Claro que é melhor ser alegre que ser triste (agora é
Vinicius), mas melhor mesmo é ninguém privar você de sentir o que for.
Em tempo: na maioria das vezes, é a gente mesmo que não se permite
estar alguns degraus abaixo da euforia.
Tem
dias que não estamos pra samba, pra rock, pra hip hop, e nem por isso
devemos buscar pílulas mágicas para camuflar nossa introspecção, nem
aceitar convites para festas em que nada temos para brindar. Que nos
deixem quietos, que quietude é armazenamento de força e sabedoria,
daqui a pouco a gente volta, a gente sempre volta, anunciando o fim de
mais uma dor – até que venha a próxima, normais que somos.