Acorda Manoel. Por Jorge Papapá
Em janeiro de 1979, a montagem Acorda Manoel foi escolhida para representar a Bahia no primeiro Congresso Nacional Artistas e Técnicos em Espetáculo de Diversão Pública, que aconteceria em Canela, Rio Grande do Sul. Eu, encarregado da direção musical, embarquei com o elenco – entre eles Kal Santos (foto) e Arany Santana, que mais tarde viria a ser Secretária de Cultura da Bahia. A peça tinha a direção de dois craques do teatro baiano: Raimundo Melo e Edizio Patriota, figuras respeitadas, experientes e de voz grossa na hora de dar bronca.
Chegamos ao Hotel Canela, onde estavam hospedados artistas de todos os cantos do país. O saguão era um desfile de celebridades: atores de novelas da Globo, produtores, técnicos e até Grande Otelo, Milton Gonçalves, Ruth de Souza, Zezé Mota…um fuzuê cultural daqueles que deixam qualquer um meio zonzo, mesmo sem beber nada.
Mal deixamos as malas nos quartos, os diretores Edizio e Raimundão convocaram a delegação baiana para uma reunião de “orientação”. Foi quase uma homilia: que o congresso era um espaço sério, que deveríamos manter postura exemplar, que estávamos ali representando a Bahia, que comportamento inadequado não seria tolerado…aquele discurso clássico de professores que desconfiam da turma.
Depois da bronca, fomos dar uma volta pela cidade – e aí começou o verdadeiro congresso paralelo: O Congresso Nacional do Vinho, gratuito e obrigatório. Cada loja em que entrávamos oferecia uma taça, cada café, outra; cada esquina, mais uma. E nós, na educação baiana, aceitavamos. E tome-lhe vinho pra dentro.
Voltamos ao hotel já meio mareados, e na frente havia mais um grupo de artistas “degustando” os vinhos dos patrocinadores. Entramos na roda, conversamos, rimos, bebemos mais um pouco – na medida, claro, porque nós tinhamos recebido o sermão, então era melhor manter a pose.
Quando a noite caiu de vez, cada um se recolheu aos seus aposentos.
Eis que, na manhã seguinte, o salão do café estava cheio de artistas, técnicos, gente importante, todo mundo se recompondo para mais um dia de congresso. De repente, ouvimos lá longe, no corredor, duas vozes arrastadas, desafinadas e altas, entoando a música do Nelson Rufino; “está faltando uma coisa em mim” – um canto bêbado, triste, feito marchinha de ressaca.
Quando olhamos para a porta…lá vinham Edizio Patriota e Raimundão, os nossos diretores moralistas, completamente bêbados, apenas enrolados em toalhas de banho, nus por baixo, abraçados, cambaleando como se ainda estivessem no palco fazendo um número experimental. Os olhos vermelhos, o sorriso torto e um jeito de quem tinha descoberto a verdadeira função social do vinho gaúcho.
O salão congelou. Artistas do brasil inteiro ficaram sem saber se era performance, protesto, encenação ou surto. Os dois baianos, que na véspera pregaram compostura, agora pareciam saídos de um bloco afro surrealista batizado de “Filhos da Uva”.
O vexame foi tão grande que até o Grande Otelo ficou pequeno e baixou a cabeça pra rir escondido.
A direção do hotel, em estado de pânico diplomático, correu para recolher os dois. Levaram para o banho, deram café preto, passaram pano – literalmente – e deixaram ambos dormindo o resto da manhã.
Quando acordaram, surgiram com aquela cara de quem levou uma surra de travesseiro molhado. Tinham vaga lembrança de algo estranho, mas ninguém – por pura caridade – comentou o ocorrido. Nem elenco, nem congresso, nem hotel. Todo mundo fez de conta que nada tinha acontecido.
A partir daquele dia, o comportamento geral foi exemplar. Ninguém mais abusou do vinho, temendo repetir o “apagão patriótico” dos nossos diretores. A Bahia, que quase começou o congresso em estado de escândalo, terminou em estado de graça – e, principalmente, sóbria.
E Acorda Manoel seguiu firme, mas quem precisava mesmo acordar – e acordou – foram Edizio e Raimundão que até hoje não sabem o que de fato aconteceu naquela misteriosa manhã de janeiro.
Jorge Papapá é músico, poeta e escritor

