Afastar-se da religião é ato civilizatório por Richard Dawkins
Richard Dawkins
está numa missão para acabar com Deus. Em seu mais recente e mais polêmico
livro, Deus, um Delírio, o
cientista de Oxford conhecido por seus genes egoístas e sua língua afiada não
poupa palavras para contestar a existência do Todo-Poderoso
– descrito
impiedosamente por ele como 'talvez o personagem mais desagradável da ficção:
ciumento, e com orgulho; controlador, mesquinho, injusto e
intransigente; genocida étnico e vingativo, sedento de sangue; perseguidor
misógino, homofóbico, racista, infanticida, filicida, pestilento,
megalomaníaco, sadomasoquista, malévolo'.
A obra, com
lançamento previsto no Brasil para quinta-feira (Cia. das Letras, 528 páginas,
R$ 54), já vendeu mais de 1 milhão de cópias em inglês – cada uma delas
carregada de um sarcasmo anti-religioso que sem dúvida, alguns séculos atrás,
seria bilhete garantido para uma noite na fogueira e uma eternidade no inferno.
Dawkins, porém,
não parece preocupado com isso. Um dos primeiros ataques do livro é justamente
contestar o argumento de que ''religião não se discute'' e deve ser respeitada
a qualquer custo. ''É sob a luz
da pressuposição de respeito pela religião sem paralelos que
faço meu aviso sobre este livro. Não farei ofensas gratuitas, mas tampouco
usarei luvas de pelica para tratar da religião com mais delicadeza do
que trataria qualquer outra coisa'', avisa.
Aqueles que
comprarem a briga encontrarão pela frente um debatedor de lucidez espantosa,
pragmatismo ferrenho e espiritualidade zero. Dawkins é do tipo acostumado a
polêmicas, sem medo de dizer o que pensa. Híbrido de zoólogo, etólogo e biólogo
molecular, o britânico nascido no Quênia começou a demarcar seu território no
mundo literário em 1976, com O Gene
Egoísta, um dos maiores best sellers da escritura científica, no
qual reduz o ser humano a um punhado de genes
interessados apenas na própria reprodução.
Trinta e um
anos depois, Deus, um Delírio
faz soar o gongo de um clássico confronto entre ciência e religião. Na visão de
Dawkins, a fé religiosa (seja qual for a denominação) não é apenas uma ilusão
inofensiva, mas um delírio nocivo do qual a sociedade precisa ser curada. ''Se
este livro funcionar do modo como pretendo, os leitores religiosos que o
abrirem serão ateus quando o terminarem'', escreve Dawkins, em um delírio
próprio de otimismo reconhecidamente presunçoso.
Em tom mais realista, ele espera,
pelo menos, convencer alguns infiéis a vestir a camisa do ateísmo com orgulho:
''O motivo de muitas pessoas não notarem os ateus é que muitos de nós relutam
em 'sair do armário'. Meu sonho é que este livro ajude as pessoas a fazê-lo.
Exatamente como no caso do movimento gay, quanto mais gente sair do armário,
mais fácil será para os outros fazerem a mesma coisa'', escreve. Dawkins,
professor de Compreensão Pública da Ciência na Universidade de Oxford,
conversou com o Estado por telefone. A seguir, os principais trechos da
entrevista.
O senhor argumenta em seu livro
que a religião é algo nocivo, que pode levar a guerras, terrorismo e
preconceito. A maioria das pessoas religiosas, entretanto, não sai dirigindo
carros-bomba por aí. Acreditam em Deus, vão à igreja aos domingos e seguem suas
vidas sem problema. A religião é algo intrinsecamente ruim ou apenas quando
levada ao extremo?
Nem tudo na
religião é ruim, claro que não. A maioria das pessoas comuns, que vão à igreja
todo domingo, não levam isso muito a sério – mas uma minoria leva, sim,
extremamente a sério. O que eu quero dizer é que são essas pessoas comuns, do
dia-a-dia religioso, que doutrinaram todos nós durante a infância de que a fé é
uma coisa boa, e que a religião é algo que precisa ser respeitada. Isso cria um
ambiente propício para o fundamentalismo, abre caminho para o extremismo.
Nós tivemos um evento trágico
recentemente no Brasil: um acidente de avião no qual morreram 199 pessoas. Numa
situação dessas, a religião, a fé, é o único consolo para muitos parentes das
vítimas. Nesse caso, também, o senhor acredita que a religião é uma coisa ruim?
Como o senhor lida com as tragédias da vida?
Se eu tivesse
religião, me preocuparia com o Deus que deixou uma coisa dessas acontecer. Você
não? Deus sempre leva o crédito pelas coisas boas, mas nunca a culpa pelas
coisas ruins. Ele deixou que a tragédia acontecesse! É incrível. Não sei se
alguém sobreviveu a esse acidente, mas se for o caso, seria capaz de apostar
que alguém disse: ''Vejam que maravilhoso, Deus salvou meu filho, minha filha,
ou seja lá quem for.'' Ninguém parece se dar conta de que esse mesmo Deus
deixou todas as
outras pessoas morrerem.
Não consigo pensar em nenhuma
sociedade, do presente ou do passado, que não tenha venerado algum tipo de
divindade – seja o Deus Sol, o Deus Vento ou qualquer outro tipo de deus. Será
que a religião não faz parte do nosso DNA, que não é algo intrínseco à essência
do ser humano?
Acho que você
tem razão. Todas as sociedades humanas manifestam algum tipo de religião. Um
grande número de pessoas é religiosa, mas não todas. Não é algo, portanto, que
esteja tão incorporado ao nosso DNA que não sejamos capazes de escapar disso.
Muitos de nós escapam, especialmente aquelas pessoas que têm uma educação
melhor. Eu diria, sim, que há uma predisposição da mente humana que nos torna
vulneráveis à religião, mas não acho que isso esteja embutido em nossos genes.
Por que contrariar esse instinto?
Bem, nós não
fazemos tudo que é natural do ser humano, fazemos? Se fizéssemos, todos nós
estaríamos andando pelados por aí. Nossos ancestrais selvagens eram
caçadores-coletores, que provavelmente lutavam constantemente entre si,
principalmente pelo controle das fêmeas. Não é exatamente o tipo de sociedade
na qual gostaríamos de viver hoje. Nós evoluímos muito desde então, ao longo de
vários
séculos de civilização, e nossa emancipação dos deuses é mais um passo desse
processo civilizatório.
Charles Darwin não era ateu, era
agnóstico (alguém que não crê em Deus, mas não descarta totalmente sua
existência). O senhor acha que ele aprovaria seu livro?
Darwin era um
homem muito gentil, que se preocupava muito em não ofender seus amigos
religiosos. Chegou a dizer que as pessoas não estavam prontas para o ateísmo.
Acho que Darwin não ficaria totalmente satisfeito com o meu livro. Acho até que
ele concordaria comigo no fundo do seu coração, mas não concordaria em publicar
o livro da maneira como eu publiquei.
Quando o senhor prega o fim da
religião e coloca a ciência como dona da verdade, essa não é uma posição tão
radical quanto a dos fundamentalistas religiosos?
Não acho. Os
fundamentalistas acreditam em algo simplesmente porque aquilo está escrito em um livro. Eu só
acredito em alguma coisa com base em evidências, e isso é uma grande diferença.
Eu admito ser passional, veemente, mas apenas sobre assuntos para os quais
existem evidências. Não sou passional porque fui criado para acreditar em algo
ou porque li aquilo em algum livro sagrado.
Muitas vezes a doutrina religiosa
é usada como uma referência moral, inclusive para impor limites éticos à
ciência – como no caso da clonagem e das células-tronco embrionárias. Sem a
religião, quem vai regular a ciência? Sem Deus para julgar nossas ações no fim
do túnel, quem vai determinar o que é certo e o que é errado?
Jogar fora a
religião não significa jogar fora a ética. Ética é algo completamente
diferente. Qualquer um que disser que baseia sua ética na religião está quase
certamente enganado. Ninguém tira seus conceitos morais da Bíblia, porque isso
significaria ser a favor da escravidão, da opressão das mulheres, do apedrejamento
de homossexuais etc. O que as pessoas fazem é selecionar versos da Bíblia que
as agradam, mas a ética e a moral elas pegam de outro lugar. Muita gente também
acredita que sem a religião todos se transformariam em pessoas más, que não
haveria nada que lhes impedisse de praticar atos ruins. Se isso é verdade,
essas pessoas não são realmente boas. Elas só são boas porque têm medo de serem
punidas por Deus, e não acho que essa seja uma forma honrosa de bondade.
O senhor foi eleito mais de uma
vez pela revista britânica Prospect como um do mais
importantes intelectuais do planeta. O senhor acha que os cientistas são os
novos pensadores, os novos filósofos do mundo moderno?
Acho que a
ciência tem, sim, muito a dizer para o mundo, e acho que as pessoas se sentiriam
muito mais completas em suas vidas se aprendessem com a ciência. Não só com o
conhecimento da ciência, mas com a metodologia do descobrimento científico, que
é algo que vale a pena ser
seguido.
A ciência tem
resposta para tudo?
Ainda não, e
talvez nunca tenha. Mas, se há algo que a ciência não pode responder, não há
nenhuma razão para supor que a religião possa.
Quem é:
Richard Dawkins É professor de Compreensão Pública da Ciência na
Universidade de Oxford
Autor de vários
livros sobre ciência, comportamento e religiosidade, começando pelo best seller
O Gene Egoísta, de 1976.
Também publicou O Capelão do Diabo,
O Relojoeiro Cego e O Rio que Saía do Éden