Amores silenciosos por Contardo Calligaris
A gente se declara apaixonado porque está apaixonado ou pelo prazer de se apaixonar?
FAZER E RECEBER declarações de amor é quase sempre prazeroso. O mesmo vale,
aliás, para todos os sentimentos: mesmo quando dizemos a alguém, olho no olho,
"Eu te odeio", o medo da brutalidade de nossas palavras não exclui uma forma
selvagem de prazer.
De fato, há um prazer na própria intensidade dos
sentimentos; por isso, desconfio um pouco das palavras com as quais os
manifestamos. Tomando o exemplo do amor, nunca sei se a gente se declara
apaixonado porque, de fato, ama ou, então, diz que está apaixonado pelo prazer
de se apaixonar.
Simplificando, há duas grandes categorias de expressões:
constatativas e performativas.
Se digo "Está chovendo", a frase pode ser
verdadeira se estamos num dia de chuva ou falsa se faz sol; de qualquer forma,
mentindo ou não, é uma frase que descreve, constata um fato que não depende
dela.
Se digo "Eu declaro a guerra", minha declaração será legítima se eu
for imperador ou será um capricho da imaginação se eu for simples cidadão; de
qualquer forma, capricho ou não, é uma frase que não constata, mas produz (ou
quer produzir) um fato. Se eu tiver a autoridade necessária, a guerra estará
declarada porque eu disse que declarei a guerra. Minha "performance" discursiva
é o próprio acontecimento do qual se trata (a declaração de guerra).
Pois
bem, nunca sei se as declarações de amor são constatativas ("Digo que amo porque
constato que amo") ou performativas ("Aca- bo amando à força de dizer que amo").
E isso se aplica à maioria dos sentimentos.
Recentemente, uma jovem, por
quem tenho estima e carinho, confiava-me sua dor pela separação que ela estava
vivendo. Ao escutá-la, eu pensava que expressar seus sentimentos devia ser, para
ela, um alívio, mas que, de uma certa forma, seria melhor se ela não falasse.
Por quê?
Justamente, era como se a falta do namorado (de quem ela tinha se
separado por várias e boas razões), a sensação de perda etc. fossem
intensificadas por suas palavras, e talvez mais que intensificadas: produzidas.
É uma experiência comum: externamos nossos sentimentos para vivê-los mais
intensamente -para encontrar as lágrimas que, sem isso, não jorrariam ou a
alegria que talvez, sem isso, fosse menor. Nada contra: sou a favor da
intensidade das experiências, mesmo das dolorosas. Mas há dois problemas.
O
primeiro é que o entusiasmo com o qual expressamos nossos sentimentos pode
simplificá-los. Ao declarar meu amor, por exemplo, esqueço conflitos e nuances.
No entusiasmo do "te amo", deixo de lado complementos incômodos ("Te amo, assim
como amo outras e outros" ou "Te amo, aqui, agora, só sob este céu") e
adversativas que atrapalhariam a declaração com o peso do passado ou a urgência
de sonhos nos quais o amor que declaro não se enquadra.
O segundo problema é
que nossa verborragia amorosa atropela o outro. A complexidade de seus
sentimentos se perde na simplificação dos nossos, e sua resposta ("Também te
amo"), de repente, não vale mais nada ("Eu disse primeiro").
Por isso, no
fundo, meu ideal de relação amorosa é silencioso, contido, pudico.
Para
contrabalançar os romances e filmes em que o amor triunfa ao ser dito e redito,
como um performativo que inventa e força o sentimento, sugiro dois
extraordinários romances breves, de Alessandro Baricco, o escritor italiano que
estará na Festa Literária Internacional de Parati, na próxima semana: "Seda" e
"Sem Sangue" (ambos Companhia das Letras).
Nos dois, a intensidade do amor
se impõe com uma extrema economia de palavras ("Sem Sangue") ou sem palavra
nenhuma ("Seda"). Nos dois, o silêncio permite que o amor vingue -apesar de ele
não poder ser dito ou talvez por isso mesmo.
No caso de "Seda": te amo em
silêncio porque te encontro ao limite extremo de uma viagem ao fim do mundo,
indissociavelmente ligada a um outro, e nem sei falar tua língua.
Você me
ama em silêncio porque sou outro: uma aparição efêmera, uma ave migrante.
No
caso de "Sem Sangue": te amo, e não há como falar disso porque te dei e te tirei
a vida. E você me ama pelas mesmas razões pelas quais poderia e deveria querer
me matar (os leitores entenderão).
Nos dois romances, a ausência da fala
amorosa acaba sendo um presente que os amantes se fazem reciprocamente, uma
forma extrema (e freqüentemente perdida) de respeito pela complexidade de nossos
sentimentos e dos sentimentos do outro que amamos.
Publicado originalmente na Folha de São Paulo
de 26.06.08