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As análises estão erradas. Por Miguel do Rosário

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Não, o Brasil não é de direita. As eleições municipais não são ideológicas.

Tenho visto análises totalmente equivocadas, ou no mínimo exageradas, sobre as eleições municipais. É o problema do senso comum e do clichê, que arrastam os analistas para opiniões mais baseadas em movimentos de manada do que numa avaliação ponderada sobre questões complexas.

O senso comum decretou: a direita venceu as eleições municipais; a esquerda foi derrotada; o Brasil é de direita.

Desculpe, mas isso não faz sentido.
Há dois anos, Lula venceu as eleições no Brasil. Foi a terceira vitória de Lula numa eleição presidencial, e a quinta vitória do PT. Uma eleição presidencial é muito mais ideológica do que uma eleição municipal.

Eleição municipal é muito mais guiada por outras variáveis políticas do que pela dicotomia direita X esquerda.

E após a vitória do PT pela quinta vez consecutiva ninguém saiu ecoando que “o Brasil é de esquerda”, ou que a “direita foi derrotada”. Porque também o voto para presidente, mesmo sendo mais ideológico, não define necessariamente a ideologia do eleitor.
O sujeito que vota num candidato a prefeito de centro-direita ou mesmo de direita não segue, necessariamente, a ideologia daquele candidato. As razões do voto são inúmeras, e a ideologia é uma delas, mas provavelmente está num dos últimos lugares.

E por que tantas análises sobre a “derrota da esquerda”, “vitória das direitas” e que “o Brasil é de direita”? Ora, é simples. Se as eleições municipais não são ideológicas, a interpretação de seu significado certamente é. A direita quer impor a narrativa de que ela é vitoriosa nos pleitos locais e que o Brasil é de direita, porque isso lhe ajuda a produzir uma atmosfera política hostil ao governo Lula.

No caso da esquerda, ela tem uma personalidade crítica que lhe é inerente. A esquerda sempre estará insatisfeita, justamente por ser de esquerda e estarmos num país profundamente desigual. Não faria sentido que a esquerda brasileira ficasse satisfeita com o país que temos ou com o resultado das urnas. Ela quer muito mais, e tem razão. Só que essa ansiedade, somada ao desejo do intelectual de esquerda, ou do jornalista, um pouco ingênuo, de provar independência, acaba produzindo um viés equivocado.

Quanto à cultura política do brasileiro, como podemos defini-la? O brasileiro é de direita?

Vamos repetir a pergunta, para respondê-la sob diferentes perspectivas: as eleições municipais deste ano sinalizaram uma derrota da esquerda e indicam que o brasileiro é conservador?

Minha resposta, reitero, é não.

Claro que temos milhões de brasileiros que se identificam muito claramente como conservadores e de direita. Mas temos outros que não se consideram assim. E temos ainda uma maioria que não se identifica com nenhum lado. Isso sem contar com aqueles que estão equivocados sobre a própria ideologia: identificam-se como de direita ou de esquerda, mas não o são propriamente.

Há várias pesquisas que mostram essa confusão. Que é uma confusão comum, até porque a linha demarcatória que separa direita e esquerda não é tão clara como desejariam alguns ideólogos, jornalistas e “analistas”.

A maioria esmagadora dos brasileiros, segundo inúmeras pesquisas, defende uma saúde pública e gratuita, o que é uma posição de esquerda. A maioria também defende que o governo intervenha na economia em favor do emprego e do desenvolvimento, o que é igualmente uma posição de esquerda.

No Brasil, ainda temos uma característica muito peculiar da direita, que é a sua hostilidade em relação às vacinas, uma posição que lhe deixou claramente em minoria na opinião pública.

Apenas esses elementos serviriam para afastar este senso comum de que o brasileiro é “de direita”.

Pior ainda é dizer que “o Brasil é de direita”, como se o Brasil fosse uma pessoa…

Quem votou em Eduardo Paes, do PSD, e não em Tarcísio Motta, do PSOL, é uma pessoa de direita? Não. Um eleitor de baixa renda, da periferia de São Paulo, que vota em Eduardo Nunes, do MDB, é uma pessoa de direita? Não necessariamente.

Então, quem venceu as eleições municipais: direita ou esquerda? Nenhum dos dois, ou pelo menos a resposta deveria ser um pouco mais sofisticada. Vejamos um exemplo.

No Ceará, o PT foi o partido que mais elegeu prefeitos, seguido do PSB. Isso quer dizer que o Ceará é de esquerda, ou que o “Ceará profundo” é de esquerda? Não. O PT ganhou porque as articulações políticas dos candidatos do PT e do PSB foram mais bem costuradas, ou simplesmente porque os candidatos apresentaram propostas mais convincentes, ou ainda porque fizeram campanhas mais sedutoras. Mas não necessariamente porque os cearenses são de esquerda.

Admito, porém, que temos hoje algumas regiões do país extremamente ideologizadas, como Santa Catarina. Muita gente nesses estados foi mobilizada eleitoralmente a votar num candidato por ele ser “de direita”. Não esqueçamos, todavia, que a mesma Santa Catarina foi o estado que mais deu votos, proporcionalmente, ao presidente Lula em 2002. Lula teve 57% em Santa Catarina no primeiro turno!

Isso significava que fosse um estado “de esquerda”? Mudou assim radicalmente da esquerda para a direita?

Aliás, repare nesse mapa eleitoral do Brasil, referente às eleições de 2002, todo avermelhado. Ele reflete um país “de esquerda”? Não creio que as opiniões dos brasileiros em 2002 fossem tão à esquerda daquelas que têm hoje. Possivelmente, o contrário é mais verdadeiro. Tínhamos um Brasil mais conservador em 2002 do que hoje.

Por outro lado, está claro que a esquerda, ou o que entendemos por esquerda, tem um “problema de imagem”, e que muitos setores da política exploram isso para mobilizar o voto “antiesquerda”.

Mas isso é muito antigo, e provavelmente remonta a milhares de anos, quando os primeiros plebeus romanos começaram a se organizar para a lutar contra os patrícios, que controlavam o poder local há séculos.

A esquerda carrega, em sua essência, o DNA antissistema, e essa é sua maior virtude, mas também o seu maior problema.

Por exemplo, apesar de toda presepada de setores extremistas da direita sobre serem “antissistema”, quem é verdadeiramente antissistema no Brasil é somente e exclusivamente a esquerda, sobretudo sua ala mais radical. E tanto é antissistema que paga um alto preço por sê-lo. É perseguida, marginalizada, combatida, pelo próprio sistema.

Quem é antissistema? Uma liderança de trabalhadores sem terra, ou sem-teto, ou um filhinho de papai de classe média alta que acha que ser antissistema é vomitar preconceito nas redes sociais e falar mal de vacina?

Quem é antissistema, quem defende o imperialismo americano, ou quem defende um mundo mutipolar, e a emergência das nações outrora oprimidas e colonizadas do Sul Global?

O Brasil hoje está mais consciente dos problemas agudos de educação, saúde e mobilidade urbana do que antes. E por isso, a meu ver, está mais à esquerda do que antes.

E por que, então, ainda tem tanta gente que vota na direita? Aí entra uma outra interpretação filosófica que considero fundamental para evitarmos esses erros analíticos, como o que vimos nessas últimas 48 horas.

Ser de direita não é uma identificação biológica, como ser branco, pardo ou preto. Tampouco é uma identificação de gênero ou sexual. A ideologia de uma pessoa é um conjunto dinâmico e complexo de ideias, que varia enormemente no tempo, a depender de uma gama imensa de fatores psicológicos, sociais e históricos.

Ansiar por um Estado eficiente na captura e isolamento dos criminosos, mesmo que isso signifique colocar de lado algumas preocupações com direitos humanos, por exemplo, não é, pelo menos não do ponto de vista histórico ou mesmo geopolítico, uma posição de direita. Caso contrário, a China comunista seria de direita. A União Soviética também seria de direita.

A questão das drogas também é emblemática. Onde há mais permissividade para o uso de drogas, nos direitistas Estados Unidos, ou na esquerdista China? Nos EUA, as cidades estão tomadas por cracolândias, a maconha já é legalizada em quase todo o país, e o americano é, de longe, o maior consumidor médio de drogas do mundo. A China está do lado exatamente oposto. É um dos países com menor consumo médio de drogas do mundo.

Para finalizar, queria arrostar, desde logo, a percepção de que eu não estaria sendo “crítico” o suficiente dos erros da esquerda, referindo-se tanto aos erros no debate político quanto aos erros eleitorais. É uma das características mais nobres da esquerda, esse orgulho de ser crítica de si mesma, o que muitas vezes a leva a ser também pessimista.

Só que aí eu vejo também um perigo. O pessimismo, já dizia Gramsci, é importante apenas quando se limita à razão, sem que interfira na necessidade de mantermos nosso otimismo e assertividade na ação.

O pessimismo, quando interfere na ação, acaba derivando, sem que a pessoa perceba, para um caminho reacionário. Interessa ao capitalismo que a pessoa de esquerda seja um pessimista desesperançado, porque isso a deixa inofensiva.

Tudo que o capitalismo quer é vender a ideia de que ele oferece um regime democrático, mas ele apenas suporta a democracia se os seus elementos rebeldes, ou esquerdistas, estiverem devidamente domesticados. E o pessimismo e a desesperança são instrumentos muito eficientes para domesticar ou castrar politicamente o cidadão rebelde.

Em suma, eu também quero ser um crítico da esquerda. Também acho que a esquerda vem cometendo muitos erros, e alguns deles bastante perigosos, e que podem nos levar a terríveis derrotas eleitorais no futuro próximo.

Entre esses erros, porém, eu incluo também esse pessimismo militante, estéril, assim como um estado de espírito rancoroso, sectário, disposto a hostilizar ou mesmo a linchar qualquer um que não esteja inteiramente vestido com os trajes retóricos adequados. Isso eu acho um erro grave da esquerda, ou da parte mais visível dela, a militância de rede social, que é o sectarismo e a agressividade.

Há muitos anos que eu combato essa cultura, que reputo nociva à esquerda, à democracia, ao debate, e que consiste no principal alimento da direita. Essa esquerda tem a mania de empurrar para a direita qualquer pessoa, qualquer ideia, qualquer projeto, que não esteja rigorosamente pintado com as cores partidárias ou corporativas corretas.

Quanto ao brasileiro ser conservador, aí também temos uma confusão. O Brasil é um país com uma história de escravidão, desigualdade profunda, subdesenvolvimento e exploração ultracapitalista. Todas as estruturas políticas, sociais e culturais do país foram construídas pela direita. Por isso é tão ridículo, a propósito, que a extrema direita se arvore como “antissistema”. Ela não é antissistema. Ela é profundamente sistema.

A esquerda, por sua vez, vem lutando, há décadas, para não dizer séculos, para promover ideais democráticos em nosso país, o que incluiria reformas profundas no próprio “sistema”. Ou seja, mudando a educação, a cultura e a comunicação. É uma luta que se renova a cada geração, cheia de altos e baixos.

Seria cruel e injusto com o povo brasileiro, portanto, defini-lo como conservador, sem considerar que ele é a principal vítima de um sistema terrível de opressão, que desde muito tempo também opera no âmbito da cultura e das ideias, escravizando-o tanto espiritual como fisicamente.

O brasileiro não é conservador. Ele é explorado, espezinhado, humilhado e mantido prisioneiro no cárcere da ignorância e da pobreza. E isso como um projeto de país, como dizia Darcy Ribeiro. E a vítima não é apenas o pobre. A classe média também sucumbe a essas estruturas ideológicas construídas pelo grande capital. Não devemos esquecer que, num país pobre, inseguro, instável, não é apenas a falta de recursos que escraviza o povo, mas igualmente o medo de perdê-los.

A principal bandeira da esquerda brasileira, portanto, deve ser ajudar o povo a emancipar a si mesmo, e por isso deve tomar muito cuidado para não repetir as ladainhas da elite predadora sobre o “Brasil ser de direita”.

Miguel do Rosário | Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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