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As curvas do algoritmo. Por Pedro Mairal

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Perto da minha casa, dobrando a Biblioteca Nacional, existia uma coisa que se chamava “A Fonte da Poesia”. Era um projetor que, da ponta de um poste, lançava poemas sobre o muro branco da fonte. Foi lindo de ver por um tempo. Os poemas iam passando e as pessoas paravam um instante para ler.

Depois ela ficou abandonada, o projetor estragou, a fonte deixou de ter água, passou a dormir ali uma família que tinha ido parar na rua. Toda noite, sobre os corpos envoltos em cobertores, na tralha toda, no carrinho de supermercado apocalíptico, iam sendo projetados os poemas, que ficaram um tanto ilegíveis, eram lidos aos pedaços. Sem querer, a Biblioteca Nacional conseguira criar a obra de arte contemporânea mais significativa dos últimos anos.

Eu via essa cena todas as noites, ao voltar para casa. E uma noite sonhei que o que se projetava ali era o meu home banking, o saldo da minha conta, as minhas finanças, senhas, débitos e créditos e transferências. Então eu corria para casa para desligar o meu computador, mas nunca chegava. Lembro de ter acordado com a sensação de intimidade violada e culpa. Uma culpa gigante. O meu dinheiro projetado como um sonho em cima daquela gente sem teto.

Mas o que aconteceu ontem foi pior. Por que foi real e tenho medo de que venha à tona. Eu gostaria de explicar aos meus alunos, pedir a eles que não façam isso circular. Não sei o que fazer. Alguém vai dizer que não foi grave, mas foi horrível. Por alguns segundos, na aula via Zoom para os alunos do ensino médio, compartilhei a tela do meu Instagram para lhes mostrar um pintor, e cometi o erro de usar o buscador. Na hora em que fiz clique no ícone da pequena lupa, soube que estava perdido.

Queria lhes mostrar algo de Basquiat que eu tinha visto dias antes. Em geral eu não improviso; tenho tudo preparado, mas alguém mencionou alguma coisa sobre grafite e eu quis dar uma de moderninho e me ferrei. Vou mostrar a vocês o que fazia um grande pintor dos Estados Unidos, eu disse.

Ao abrir o meu buscador do Instagram, apareceu uma cascata de fotos de mulheres voluptuosas, quase nuas, de fio-dental. E se ouviu uma gargalhada. Perdão, perdão, eu disse, e não sabia se interrompia o compartilhamento de tela ou buscava rápido o que queria. Fiquei com a segunda opção, e isso levou mais tempo, porque escrevi Basquiat errado, escrevi com k. Ali apareceram closes de decotes, moças de peitões, bundas monumentais.

Dei um scroll para baixo, como que querendo escondê-las, mas apareceram mais: as fisiculturistas de coxas monstruosas, morenas gigantes com transparências, deusas do fitness… Acabei de ver a gravação que ficou no Zoom e apaguei. Mas com certeza algum dos meus alunos já deve tê-la baixado e isso vai viralizar no YouTube e chegará ao noticiário da tarde.

Que vergonha. E ainda por cima dá para ouvir a minha tentativa de fazer piada. Justo antes de aparecerem os quadros de Basquiat, eu digo: “Perdão, o algoritmo extrapolou”.

Por que é verdade. Não sei que série de buscas e cliques foram empurrando o meu algoritmo a essas curvas exageradas. Como se houvesse ali uma evolução lenta, imperceptível. Em algum momento, o Instagram me mostrou uma imagem quase erótica como isca, e eu, um professor cinquentão insone, quis vê-la, e depois o deus da matrix foi ampliando essa curiosidade, essas ancas, essa fraqueza, e em pouco tempo o buscador me encheu de mulheres hiper carnudas de bunda, pronunciaram essas curvas em que derrapou para sempre a minha libido final. Ponho a culpa no algoritmo, queridos alunos.

Essa é a triste vida sexual do professor de literatura de vocês: um breve sonho erótico no qual vagueio por praias tropicais como um turista alemão que olha, mas não toca, entre mulheres voluptuosas sentadas em pose sexy sobre espreguiçadeiras e rochas e em academias de ginástica ao ar livre, piscando e sorrindo para mim ao passar. Peço desculpas.

Artigo publicado originalmente em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nosso-estranho-amor/2021/06/as-curvas-do-algoritmo.shtml

 

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