Aldeia Nagô
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As Escadarias do Teatro Castro Alves. Por Jorge Papapá

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Há lugares que não são feitos apenas de pedra, arquitetura ou função. Há lugares que funcionam como portais – espaços onde a cidade se dobra sobre si mesma para reinventar seus próprios caminhos.

As escadarias do Teatro Castro Alves foram, para Salvador, esse território mágico. Um chão inclinado onde o passo virava poema, a conversa virava movimento e a vida encontrava sempre um jeito de virar arte.

No final dos anos 70 e início dos 80, constituíram um verdadeiro laboratório cultural, político e estético de onde emergiram movimentos, grupos, artistas e idéias que transformaram a cena baiana. Ali, entre conversas, improvisos e experimentações, formou-se uma geração que redefiniu a dança, a música e o ativismo na cidade.

Nas escadarias, conviviam artistas, estudantes, profissionais liberais, amantes das artes e personagens da vida cultural soteropolitana.

Foi ali, naquele vai e vem de gente e energia, que conheci Raimundo Tição. Ele descia a escadaria como quem trazia um tambor no peito, uma dança nos ombros, uma ancestralidade nos Passos. O primeiro rasta que cruzou meu caminho. Com ele, o mundo se abriu em gestos, ritmos e ensaios que nos levaram a teatros, ruas, praças – como o antigo Teatro Sucupira, onde hoje repousa o anexo da Câmara dos Vereadores, mas onde, naquela época, vibrava um palco de descobertas.

A escadaria não era apenas ponto de passagem: era o lugar onde as parcerias nasciam como quem acende uma vela no escuro.

Ali também fervilhava o espírito do Movimento Negro Unificado. Cada degrau parecia um convite para que a cidade repensasse sua própria pele. O grupo Malê, que se reunia no IAB (Instituto dos Arquitetos da Bahia), na Ladeira da Praça, era uma dessas células vivas: Lino de Almeida, Leninha, Leib Carteado, Godi, Astor, eu e outros tantos que atravessavam a noite discutindo identidade, arte, futuro.

As escadarias eram, para nós, um altar laico onde politica e poesia caminhavam juntas. E foi dali, desse mesmo chão, que vi a dança da Bahia renascer. O sopro estrangeiro de Clayde Morgan encontrou o vento antigo de Mestre King, Conga,Tição, Bernardo e tantos outros. O encontro do mundo com o terreiro. O choque entre o clássico e o corpo baiano que pulsa como maré.

Dessa mistura nasceu o Frutos Tropicais – bailarinos negros, capoeiristas, gente que trazia o corpo inteiro para a cena – até invadir o Balé do Teatro Castro Alves com uma estética que cheirava a rua, sal, suor e liberdade.

O teatro, que antes parecia tão distante da cidade real, ganhou cheiro de gente, de orixá, de festa e de luta.

As escadarias também me empurraram para a Escola de Música. Ali estudei com mestres que eram como ventos fortes: Ernst Widmer, Pino Onis, Lindemberg Cardoso, Piero Bastianelli, Walter Smetack – cada um ensinando a escutar o mundo com outra pele.

Entre corredores e palcos, vi nascer o Sexteto do Beco, com músicos que ainda nem sabiam o quanto fariam diferença: Sérgio Souto, Fred Dantas, Veléu Cerqueira, Andréa Daltro, Sarquis, Paulinho Andrade, Cabral, Juraci Bemol e outros. Eles tocavam como quem acende fogueiras no meio da cidade – no ICBA, no Solar do Unhão, nas universidades- e a noite baiana respondia em coro.

E enquanto isso, o Bendengó – Gereba, Capenga, Zeca Barreto e Vermelho – temperava a Bahia com canções que pareciam carregar o cheiro do Recôncavo e o riso do Pelourinho.

O mais bonito era perceber que nada disso acontecia isolado. Tudo brotava ali, naquela fronteira simbólica entre dentro e fora do teatro. De um lado, o público que entrava para ver o espetáculo. Do outro, um público que ficava – resenhando, criando, tramando sonhos, como quem entende que a verdadeira arte também acontece antes, depois e sobretudo fora do palco.

As escadarias eram o coração aberto da cidade.

Hoje, quando penso naqueles anos, percebo que as escadarias do Teatro Castro Alves foram mais do que cenário. Foram personagem. Foram chão fértil, bússola, sala de aula e templo profano.

Foi dali que sairam grupos, idéias, corpos, sons e lutas que transformaram a Bahia.
Foi ali que muitos de nós encontraram o nome da própria voz.

As escadarias eram – e ainda são – o lugar onde a arte desce para conversar com a vida. E onde a vida sobe alguns degraus para virar história.

Jorge Papapá é músico, poeta e escritor.

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