Até que ponto os jornais podem chegar… por Gilberto Maringoni
O rosnar golpista do Instituto Millenium
Não é bom subestimar os pitbulls da imprensa brasileira. A
direita não costuma se unir apenas para tomar chá com torradas. Só não articulam
um golpe por sua legitimidade social ser reduzida.
Gilberto Maringoni
(Agenciacartamaior.com.br)
Vale a pena refletir mais um pouco sobre os significados e
conseqüências do 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão, realizado pelo
Instituto Millenium em São Paulo, na segunda-feira, 1º. de março.
A
grande questão é: por que os barões da mídia resolveram convocar um evento
público para discutir suas idéias? Ta bom, vamos combinar. A R$ 500 por cabeça
não é bem um evento público. Mas era aberto a quem se dispusesse a
pagar.
No subsolo do luxuoso hotel Golden Tulip estavam o que se poderia
chamar de agregados da Casa Grande dos monopólios da informação, como
intelectuais de programa e jornalistas de vida fácil. Todos expuseram suas
vísceras, em um strip-tease político e moral inigualável. Um espetáculo digno de
nota. Nauseabundo, mas revelador.
Uma observação preliminar: os donos, os
patrões, os proprietários enfim, tiveram um comportamento discreto e comedido ao
microfone. Não xingaram e não partiram para a baixaria. Quem desempenhou esse
papel foram os seus funcionários.
Nisso seguem de perto um ensinamento
de Nelson Rockfeller (1908-1979), relatado em suas memórias. Quando resolveu
disputar as eleições para governador de Nova York, em 1958, falou de seus planos
à mãe, Abby Aldrich Rockefeller. Na lata, ela lhe perguntou: "Meu filho, isso
não é coisa para nossos empregados"?
Os patrões deixaram o serviço sujo
para os serviçais. Estes cumpriram o papel com entusiasmo.
Objetivos
do convescote
Os propósitos do Fórum não são claros. Formalmente é a
defesa da liberdade de expressão, sob o ponto de vista empresarial. Quem
assistiu aos debates não deixou de ficar preocupado. Aos arranques, os pitbulls
da grande mídia atacaram toda e qualquer tentativa de se jogar luz no
comportamento dos meios de comunicação.
Talvez o maior significado do
encontro esteja em sua própria realização. Não é todo dia que os donos da Folha,
da Globo e da Abril se juntam, deixando de lado arestas concorrenciais, para
pensarem em táticas comuns na cena política nacional.
Um alerta sobre
articulações desse tipo foi feita por Cláudio Abramo (1923-1987), em seu livro
"A regra do jogo", publicado em 1988. A certa altura, ele relata uma
conversa mantida com Darcy Ribeiro (1922-1997), no início de março de 1964.
"Alertei-o de que dias antes, o dr. Julinho [Mesquita, dono de O Estado de S.
Paulo] havia visitado Assis Chateubriand [dos Diários Associados], e que aquilo
era sinal seguro de que o golpe estava na rua. Porque a burguesia é muito
atilada nessas coisas, não tem os preconceitos pueris da esquerda. Na hora H ela
se une".
Pois no Instituto Millenium estavam unidos Roberto Civita
[Abril], Otávio Frias Filho [Folha] e Roberto Irineu Marinho [Globo]. Sem mais
nem porquê.
Não se pode dizer que a turma resolveu botar o golpe na rua.
Mas é sintomática a realização do evento quase no mesmo dia em que a candidatura
de Dilma Roussef empatou com a de José Serra, de acordo com o Datafolha. Ou que
ele aconteça quando os partidos conservadores – PSDB e DEM – estejam às voltas
com crises sérias.
O que isso quer dizer? Quer dizer que as
representações institucionais da direita brasileira estão se esfarelando. Seu
candidato não sabe se vai ou se não vai. Apesar de o governo Lula garantir altos
ganhos ao capital financeiro, deixando intocada a política econômica neoliberal,
este não é o governo dos sonhos da plutocracia pátria. Elas não suportam
conviver com a ala popular, minoritária na gestão do ex-metalúrgico. Deploram a
política externa, a não criminalização dos movimentos sociais e a possibilidade
de um governo Dilma acatar indicações das várias conferências temáticas
realizadas nos últimos anos, como a de Direitos Humanos e a de Comunicação
(Confecom).
Incômodo com a Confecom
Falar nisso, há um nítido
incômodo com os resultados da Confecom. A grande mídia não tolera que o tema da
democratização das comunicações tenha entrado na agenda nacional.
A
reação a tais movimentações sociais tem mudado substancialmente a imprensa
brasileira. Para pior, vale sublinhar. Para perceber isso, vale a pena fazer uma
brevíssima recuperação histórica.
Nos anos anteriores a 1964, a grande
mídia – O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Globo, Folha de S. Paulo e
Diários Associados, entre outros – tornou-se propagandista e operadora do golpe
militar. Colheu desgaste e sofreu censura, anos depois.
O primeiro órgão
a notar que, para viabilizar seus propósitos empresariais, necessitava mudar de
comportamento foi a Folha de S. Paulo. Com um jornal sem importância antes até o
inícios dos anos 1970 e acusado de auxiliar o aparato repressivo da ditadura,
seus proprietários perceberam que para mudar sua inserção no mercado valeria a
pena abrir páginas para a oposição democrática.
Apostando na
democratização
O projeto editorial de 1984 do jornal (http://www1.folha.uol.com.br/folha/conheca/projetos-1984-3.shtml)
dizia o seguinte:
"A Folha é o meio de comunicação menos conservador
de toda a grande imprensa brasileira. (…) É com certeza o que encontra maior
repercussão entre os jovens. Foi o que primeiro compreendeu as possibilidades da
abertura política e o que mais se beneficiou com ela, beneficiando a
democratização. É o jornal pelo que a maioria dos intelectuais optou. É o mais
discutido nas escolas de comunicação e nos debates sobre a imprensa
brasileira".
Ou seja, percebendo que a democratização lhe granjeava
dividendos comerciais, o jornal deu espaço para lideranças, intelectuais e temas
identificados com a mudança, em tempos finais da ditadura.
Topo da
pirâmide
Vinte e três anos depois, em 11 de novembro de 2007, a Folha
publicaria uma pesquisa sobre seu público, intitulada "Leitor da Folha está no
topo da pirâmide social brasileira" (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1111200715.htm).
Logo na abertura, a matéria destaca:
"O leitor da Folha está no topo
da pirâmide da população brasileira: 68% têm nível superior (no país, só 11%
passaram pela universidade) e 90% pertencem às classes A e B (contra 18% dos
brasileiros). A maioria é branca, católica, casada, tem filhos e um bicho de
estimação".
Saem de cena os "os intelectuais", "os debates sobre
imprensa brasileira" e entram os endinheirados. Do ponto de vista empresarial é
isso mesmo. Jornal tem de vender e veicular anúncios a quem tem alta capacidade
de consumo.
Mas para atender a essa lógica, movimentações editoriais são
feitas. Ao invés de se priorizar um limitado pluralismo anterior, passam-se a
criar cadernos e atrações voltados para os novos desígnios do público. E a linha
editorial e os colunistas passam a ser cada vez mais conservadores.
A
Folha beneficiou-se e soube utilizar em proveito próprio do formidável impulso
democrático da sociedade brasileira dos anos 1980. Quase três décadas depois,
percebe que a continuidade desse movimento não lhe interessa. E se insurge
contra ele, com seus pares empresariais, entrando de cabeça nos fóruns do
Instituto Millenium.
Golpe em marcha?
Articulações desse
tipo são geralmente danosas à democracia. Sempre que ficam carentes de
representações, as classes dominantes (chamemos as "elites" por seu nome real)
entram no jogo institucional de forma truculenta e atabalhoada. Buscam impor sua
vontade a ferro e fogo, uma vez que as regras do convívio político não lhes
interessam mais. Seus impulsos são sempre pela ruptura dessas regras. Pelo
golpe.
Foi o que aconteceu na Venezuela, em 2002. Com a falência dos
partidos de direita e com a avassaladora legitimidade do governo Hugo Chávez, as
oligarquias locais – em associação com a Casa Branca, com a cúpula das forças
armadas e com a grande mídia – partiram para a ignorância. E se deram
mal.
Não é pouca coisa a afirmação do ex-filósofo Roberto Romano, durante
o Fórum do Instituto Millenium: "O aspecto ditatorial do Plano Nacional dos
Direitos Humanos passaria em branco, não fosse o descontentamento manifestado
pelos militares". Logo quem o professor de Ética (!) invoca como paladinos
da democracia…
A tática golpista vingará por aqui? Pouco provável, pois
seus defensores encontram-se isolados. O destempero exibido por alguns
palestrantes durante o evento – notadamente Romano, Jabor, Reinaldo Azevedo,
Marcelo Madureira, Sidnei Basile, Denis Rosenfield e Demetrio Magnoli – é uma
patente demonstração de seu reduzido apoio social.
No entanto, não se
pode subestimar essa turma. Como interpretar a delirante intervenção de Arnaldo
Jabor, ao dizer que "A questão é como impedir politicamente o pensamento de
uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo"? Como chegar a tal
objetivo se não pela quebra da democracia?
Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em
História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de "A Venezuela que se
inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez" (Editora Fundação
Perseu Abramo).