Bembé do Mercado: notas sobre os 135anos. Por Marlon Marcos
O Bembé é uma festa negra erguida pelos sentidos da gratidão: tocar para os inquices, voduns e orixás
Não vou falar de resistência,de luta, de superação. Nem acreditar que todas as tradições estão ali mantidas. As tradições são inventadas e reinventadas pela força do tempo presente. Eu vou falar da beleza de um evento anual que amplia o encantamento de uma cidade marcada por sua negritude, uma cidade responsável pela presença histórica na cultura brasileira de tantos artistas, intelectuais, fundamentais para a expressão da nossa inventividade como povo e das nossas realizações como civilização. Vou falar do Bembé do Mercado, em Santo Amaro da Purificação de Nossa Senhora, em seus 135 anos de existência, no instante-já (Clarice Lispector) comandado pelo vigor gestor do líder espiritual (e político) Pai Pote de Ogum.
Desde 1889, o Bembé é uma festa negra erguida pelos sentidos da gratidão: tocar para os inquices, voduns e orixás e, depois, louvar agradecendo às águas a insuficiente abolição oferecida aos negros que ergueram com muitobtrabalho braçal e intelectual a nossa sociedade. É uma festa dirigida por Xangô e oferecida ao feminino profundo visto nas orixás Iemanjá e Oxum. Predomínio de adoração para Ela, aquela que entre nós brasileiros ficou sendo a Senhora Maior dos oceanos, Iemanjá, colo protetor dos nossos sonhos, alfange infalível em nossas batalhas. A beleza está aí: louvar as águas em seus espectros do feminino e agradecer, ritualisticamente, todos os anos, mais que a abolição, a manutenção da vida em um país racista, genocida, aporofóbico, que insiste em subjugar elementos culturais salvaguardados em filosofias e epistemologias irradiadas pelos nossos terreiros e que estão circunscritas em tradições afroindígenas no Brasil.
Quero falar da beleza de mulheres, homens, crianças, rodeados de flores, paramentados em suas vestes litúrgicas, altivos donos de sua realeza, entre os toques narrativos dos atabaques, as vozes graves e agudas em resultados irregulares, as danças contadoras de mitos, o brilho preciso centrado ora no Mercado, ora à beira-mar de Itapema, momento sublime e delicado de ofertar os presentes a Iemanjá eaOxum. Quero falar rezando por esta entrega que se ilumina da grandeza universal africana que intuiu a “força que mora n’água” e nos ensinou a adorá-la em nome de toda a vida existente neste planeta. A água também adorada por nossos indígenas na Kirimurê, Subaé e Paraguaçu, os igarapés, nos lagos e diques, nas lagoas, em nosso suor, em nossas lágrimas.
O Bembé é cinema: o exímio trajar do povo de santo local e nacional, junto em cânticos, danças, fé e disputas. Um poema escrito a cada ano com as presenças dos integrantes desta fé candomblé, com seus visitantes nascidos em Santo Amaro (a maioria ainda ignora a grandeza desse evento) ou em qualquer outro lugar do mundo, ali, todas as pessoas, envolvidas no encantamento, escrevem o poema Bembé do Mercado.
Marlon Marcos Poeta, jornalista, antropólogo, professor da Unilab ogunte21@gmail.com