Bifurcação na Justiça por Boaventura de Souza Santos
Ao contrário do que se pode pensar, a justiça histórica tem menos a ver com o
passado do que com o futuro.
ENTENDE-SE por bifurcação a situação de um sistema instável em que uma
alteração mínima pode causar efeitos imprevisíveis e de grande porte. Penso que
o sistema judicial brasileiro vive neste momento uma situação de bifurcação.
O Brasil é um dos países latino-americanos com mais forte tradição de
judicialização da política. Há judicialização da política sempre que os
conflitos jurídicos, mesmo que titulados por indivíduos, são emergências
recorrentes de conflitos sociais subjacentes que o sistema político em sentido
estrito (Congresso e governo) não quer ou não pode resolver. Os tribunais são,
assim, chamados a decidir questões que têm um impacto significativo na
recomposição política de interesses conflitantes em jogo.
Neste momento, o
país atravessa um período alto de judicialização da política. Entre outras
ações, tramitam no STF a demarcação do território indígena Raposa/Serra do Sol,
a regularização dos territórios quilombolas e as ações afirmativas vulgarmente
chamadas cotas. Muito diferentes entre si, esses casos têm em comum serem
emanações da mesma contradição social que atravessa o país desde o tempo
colonial: uma sociedade cuja prosperidade foi construída à base da usurpação
violenta dos territórios originários dos povos indígenas e com recurso à
sobreexploração dos escravos que para aqui foram trazidos.
Por essa razão,
no Brasil, a injustiça social tem um forte componente de injustiça histórica e,
em última instância, de racismo antiíndio e antinegro. De tal forma que resulta
ineficaz e mesmo hipócrita qualquer declaração ou política de justiça social que
não inclua a justiça histórica.
E, ao contrário do que se pode pensar, a
justiça histórica tem menos a ver com o passado que com o futuro. Estão em causa
novas concepções de país, soberania e desenvolvimento.
Desde há 20 anos,
sopra no continente um vento favorável à justiça histórica. Desde a Nicarágua,
em meados dos anos 80 do século passado, até a discussão em curso da nova
Constituição do Equador, têm vindo a consolidar-se as seguintes idéias.
Primeira, a unidade do país se reforça quando se reconhece a diversidade das
culturas dos povos e das nações que o constituem. Segunda, os povos indígenas
nunca foram separatistas. Pelo contrário, nas guerras fronteiriças do século 19,
deram provas de um patriotismo que a história oficial nunca quis reconhecer.
Hoje, quem ameaça a integridade nacional não são os povos indígenas; são as
empresas transnacionais, com sua sede insaciável de livre acesso aos recursos
naturais, e as oligarquias, quando perdem o controle do governo central, como
bem ilustra o caso de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia).
Terceira, dado o
peso de um passado injusto, não é possível, pelo menos por algum tempo,
reconhecer a igualdade das diferenças (interculturalidade) sem reconhecer a
diferença das igualdades (reconhecimentos territoriais e ações afirmativas).
Quarta, não é por coincidência que 75% da biodiversidade do planeta se
encontra em territórios indígenas ou de afrodescendentes. Pelo contrário, a
relação desses povos com a natureza permitiu criar formas de sustentabilidade
que hoje se afiguram decisivas para a sobrevivência do planeta.
É por essa
razão que a preservação dessas formas de manejo do território transcende o
interesse desses povos.
Interessa ao país no seu conjunto e ao mundo. Pela
mesma razão, o reconhecimento dos territórios tem de ser em sistema contínuo,
pois doutro modo desaparecem as reservas e, com elas, a identidade cultural dos
indígenas e a própria biodiversidade.
Esses são os ventos da história e da
justiça social no atual momento do continente. Ao longo do século 20, não foi
incomum que instâncias superiores do sistema judicial atuassem contra os ventos
da história, e quase sempre os resultados foram trágicos.
Nos anos 30, a
Suprema Corte dos EUA procurou bloquear as políticas do "New Deal" do presidente
Roosevelt, o que impediu a recuperação econômica e social que só a Segunda
Guerra Mundial permitiu. No início dos anos 70, o Superior Tribunal do Chile
boicotou sistematicamente as políticas do presidente Allende que visavam a
justiça social, a reforma agrária, a soberania sobre os recursos naturais,
fortalecendo assim as forças e os interesses que ganharam com o seu assassinato.
Em momentos de bifurcação histórica, as decisões do STF nunca serão formais,
mesmo que assim se apresentem. Condicionarão decisivamente o futuro do país.
Para o bem ou para o mal.
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, 67, sociólogo português, é
professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
(Portugal). É autor, entre outros livros, de "Para uma Revolução Democrática da
Justiça" (Cortez, 2007).
Publicado originalmente na Folha de São Paulo de 10
Junho 2008