Breu e baile; Por Cláudia Almeida
Breu. Uma guitarra hesitante ensaia os primeiros acordes, amarrando o fio da harmonia. Alguns compassos. O cajón entra com sua marcação ritmada, insistente. Em seguida, palmas ‘sordas’ vão se integrando à cadência e ao andamento.
Fluidez e pulsação. Uma voz pungente se desprende em queixumes, longos ‘ais’. Uma luz tênue vai amansando a escuridão. O palco está montado. Não há cenário algum, nada que desvie a atenção; só há protagonistas, cada um fazendo e sendo música. No lado esquerdo do palco revela-se aos poucos uma silhueta quase arbórea, com o torso sinuoso e os braços suspensos, alcançando o que não está lá.
Num suspiro repentino, os braços se abrem em galhada e vão voluteando, as mãos acompanhando o movimento espiralado. O tronco permanece imóvel; só há vida e movimento nos braços que gravitam na penumbra. De repente, a bailaora vira e golpeia o tablado com ímpeto e atrevimento, impondo o andamento com seu taconeo preciso. Seu rosto é pura irreverência e ousadia; os golpes, tacos, puntas e tacóns se enredam nas palmas que se tornam vivas e vão acelerando num sapateado febril e enérgico; não são mais apenas passos, é música que parece se desprender da pele, tão resoluto e intenso o corpo. Um remate; um cierre. Só a respiração ofegante da bailaora dita agora o ritmo do silêncio.
A guitarra retoma o compasso, ansiosa. Inicia uma levada mais lenta e suave, chamando um bruxuleio delicado de mãos e braços, os pés agora quase inaudíveis. Ela se mostra inteira, seu colo arquejando da bravura anterior e antevendo a delicadeza da letra que o cantaor agora entoa. É uma soleá. Solidão, desterro. E é com esse mesmo abandono que ela esquadrinha sua própria soledade e impõe aos espectadores sua dor, sua inquietude, sua angústia. São paseos e braceos impiedosos mas serenos, as mãos arrancando do peito o desassossego e lançando-o lentamente na plateia embriagada de intensidade. Os olhos da bailaora fitam cada um, e nenhum. Ela baila para si.
Um último fôlego e guitarra, cajón, palmas e cante eclodem em acordes impetuosos, desafiando a bailaora, que responde com o corpo em uníssono, toda ela uma enxurrada de sensações. A música interpela, ela revida. Sua saia volumosa incendeia o tablado, seus volantes serpenteando e pintando o movimento, como um Matisse reinventado. Tudo nela é mobilidade e ela provoca o público, que agora não é mais assistente, é quase testemunha hipnotizada da franqueza e desassombro do baile arrebatado. Inesperadamente, ela para. Com o queixo, ela afronta cada um de nós e enceta mais um sapateado impossível antes de fazer um gesto de premeditado enfado e sair, tão tênue e imperceptível como entrou.
A guitarra ainda triturou uns poucos compassos desvanecidos antes de também libertar a mudez significativa. Nada mais havia a ser dito. Mas todos ouviram.
Cláudia Almeida é…
…carioca ‘quase calango’, de tanto tempo que vive em Brasília. É professora de inglês e tem paixão pelas palavras – e os silêncios. Em maio de 2016, se deu de presente de 50 anos a assinatura do Cafezinho Literário e espera ansiosa pelos e-mails todo domingo.
*A obra que ilustra esta postagem se chama El Jaleo (1882), de John Singer Sargent.
Artigo publicado originalmente em http://www.ocafezinho.com/2016/06/12/cafezinho-literario-o-breu-e-o-baile-de-claudia-almeida/