Cada um conta o que quer contar por Diogo Moyses
Muitos leitores devem ter notado que a TV Globo passou as duas
últimas semanas celebrando o aniversário de 40 anos do Jornal Nacional. Desde a
sua criação, o telejornal global é, de longe, a principal fonte de informação
de milhões de brasileiros.
Bonner e Fátima Bernardes fizeram questão de nos lembrar das
tantas glórias conquistadas pelo JN e pelo jornalismo da emissora. Matérias
intermináveis – intermináveis mesmo, de quase 15 minutos – exaltaram os feitos
do telejornal. Os mais antigos repórteres (os que certamente melhor cumprem
ordens do patrão) foram chamados à bancada e, ao vivo, recordaram as coberturas
dos fatos que marcaram a história recente do país.
Telespectadores desavisados, desconhecedores de episódios
importantes da vida nacional, talvez até tenham ficado com lágrimas nos olhos.
É fato incontestável que o Jornal Nacional consolidou-se desde a
década de 1970 (estreou em 1969) como símbolo do poder das Organizações Globo.
Com uma estrutura quatro, cinco ou seis vezes maior do que os telejornais de
suas concorrentes, ainda hoje bota medo na maioria dos políticos, que temem ser
alvos de abordagens, digamos, pouco simpáticas. Quando as menções são
positivas, aí é só festa. Dá até pra pensar em vôos mais altos. Símbolo maior
desse poder é o fato de seu lobista-chefe ser chamado de "senador"
nos corredores do Congresso Nacional. Sem nunca ter sido candidato nem eleito
para cargo algum, desfruta de poderes que nenhum parlamentar possui.
O JN tem todo o direito de comemorar o que bem entender. Aliás, a
Globo é perita em se auto-promover. Já fez isso em diversas ocasiões e continua
a fazer com competência, posando de defensora da cultura nacional e da
liberdade de expressão, além da já manjada face "solidária" que os
Crianças Esperanças da vida buscam construir.
O perigo iminente disso tudo é que, em um país pouco conhecedor da
biografia de seus meios de comunicação, corre-se o risco de reescrever a
história. O temor não se faz em vão: como historiadores cansam de afirmar, a
memória coletiva muitas vezes é fruto do legado dos mais fortes.
Mas voltemos ao nosso tema. Como era previsível, o JN tratou de
lembrar das tantas ocasiões nas quais noticiou fatos da vida política,
econômica, cultural e esportiva do país.
Esqueceu-se, no entanto – e ao acaso isso não pode ser creditado
-, de recordar os momentos em que o telejornal global foi ele mesmo sujeito da
história.
Ficou de fora da retrospectiva, por exemplo, que o surgimento e
fortalecimento da TV Globo deu-se a partir de um acordo ilegal com o grupo
estrangeiro Time-Life, que foi inclusive objeto de CPI no Congresso Nacional.
Esqueceram de dizer que a emissora foi criada e se fortaleceu com
o apoio decisivo dos sucessivos governos militares. E que seu jornalismo, em
especial o JN, ignorou solenemente as torturas, os desaparecimentos e as mortes
dos que lutavam contra a ditadura, como se não tivessem acontecido.
O resgate histórico deixou de lado a tentativa de ignorar o
movimento pelas eleições diretas nos primeiros anos da década de 1980, assim
como a participação da emissora na tentativa mal sucedida de fraude nas
eleições para o governo do Rio de Janeiro, com o objetivo de evitar a posse de
Leonel Brizola.
A memória seletiva igualmente deu conta de apagar a participação
decisiva do JN na eleição de Fernando Collor em 1989, quando a emissora editou
de forma canalha o último debate entre Collor e Lula, além de utilizar contra o
candidato petista as acusações lunáticas de sua ex-mulher e o seqüestro do
empresário Abílio Diniz.
Nos anos seguintes, de forma nem um pouco sutil, foi linha de
frente na consolidação da idéia – hoje comprovadamente furada – de que o
neoliberalismo e a privatização de empresas estatais eram o único caminho a
seguir, impulsionando a eleição e reeleição de FHC à Presidência.
Há ainda uma série infindável de episódios mais recentes que
poderiam ser acrescentados à lista, como a cobertura favorável ao tucano
Alckmin nas últimas eleições presidenciais. Ao contrário de outras tentativas,
a tática não deu certo, graças à multiplicação das fontes de informação e, quem
sabe, ao aumento da consciência política das classes menos favorecidas.
Fato é que, ao longo de toda a sua história, a Globo consolidou-se
como os olhos e ouvidos da atrasada elite brasileira, cerrando fileiras contra
movimentos sociais e quaisquer políticas distributivas. Em Brasília, seu
"senador" é sempre recebido com afagos. Tapetes vermelhos se estendem
aos seus pés. E assim, políticas que visam democratizar as comunicações do país
são enterradas antes mesmo de nascerem.
É normal, compreensível até, que o JN tente recontar a sua própria
história. O que não pode acontecer é que a história não contada por ele seja
esquecida por nós.
Diogo Moyses é jornalista e radialista especializado em regulação e
políticas de comunicação, pesquisador do Idec – Instituto Brasileira de Defesa
do Consumidor e autor de A
convergência tecnológica das telecomunicações e o direito do consumidor.