Chinua Achebe e a África do século XX, por Alberto da Costa e Silva
Escritor nigeriano, morto há um mês, reinventou o idioma do colonizador em sua literatura, expressando esperança e desencanto com as lutas e tragédias do continente
Em 22 de março de 2013, morreu em Boston, aos 82 anos, um dos maiores escritores africanos de língua inglesa. Chinua Achebe era um ibo. Pertencia a um povo que tradicionalmente ocupa as terras que se estendem, no sudeste da Nigéria, entre os rios Níger e Cross, desde um pouco abaixo da confluência daquele com o Benué até o norte do seu grande delta. E, sendo nigeriano, foi ibo até o fim. Como outros de sua geração que acordaram na escola do colonizador para a aventura da escrita, deve ter sofrido por não pôr no papel os seus poemas e histórias na língua de sua primeira infância, mas naquela em que o ensinaram a ler. Sabia, porém, como aqueles que imediatamente o precederam, que o idioma em que se expressava a violência do estrangeiro podia ser transformado em arma de inconformidade, rebeldia e resistência. Na África, os colonizados apropriaram-se da língua do colonizador, e seria em francês, inglês ou português que se fariam as independências e tomariam forma as literaturas nacionais.
O serere Léopold Sédar Senghor escrevia em francês, mas num francês em que ressoavam os tambores de sua terra natal. O inglês de Amos Tutuola tornou-se mágico, ao tomar a inflexão e a música do iorubá. E são iorubás as vozes que se ouvem, falando em inglês, nas peças teatrais de Wole Soyinka. Assim também, o idioma ibo não se despede de nós nos livros — todos escritos em inglês — de Cyprian Ekwensi, Chukwuemeka Ike e, sobretudo, Chinua Achebe.
O seu primeiro romance, “Things fall apart” (“O mundo se despedaça”, na tradução em português, publicada pela Companhia das Letras), começa e termina na aldeia ibo de Umuófia. Achebe não a idealiza, mas a descreve com suas intrigas, sua competição feroz por riqueza e prestígio, seu desprezo pelos malogrados. Mostra-nos uma sociedade hierarquizada, com escravos e párias, governada minuciosamente por regras para cada circunstância, lugar e momento. Eis que chega o homem branco e, apesar de sua religião absurda, de suas leis incompreensíveis e de seu comportamento irracional, que o leva a cometer todo tipo de sacrilégios e ignomínias, começa a desmontar a coerência do universo ibo.
Uma outra aldeia, Umuaro, é o principal cenário de “The arrow of God“ (“A flecha de Deus”, pela mesma editora), um romance em que se aprofundam dramaticamente as dificuldades de convivência entre os valores e modos de vida tradicionais e os que os britânicos trouxeram consigo e procuravam impor. Tamanha é a intensidade dos conflitos e de tal forma eles ferem a alma das personagens, que o enredo do livro pode ser resumido como uma luta entre o deus da aldeia ibo e o Deus dos brancos.
“O mundo se despedaça” foi publicado em 1958; “A flecha de Deus”, em 1964. Ambos, como vários outros livros de Achebe, foram escritos durante aqueles anos de euforia e esperança, nos quais as independências anunciavam que o continente africano reencontrava a sua história e o seu rumo. Não tardaram as decepções. Já no dia seguinte ao da independência desatou-se, feroz, a crise no ex-Congo belga. E os massacres, desde 1959, envolvendo tutsis e hutus, em Ruanda e em Burundi, bem como a deposição e o assassinato pelos militares do primeiro presidente do Togo, Sylvanus Olympio, em 1963, prenunciavam as três décadas em que a África sofreu os flagelos dos partidos únicos, das guerras civis e dos chefes de Estado escolhidos nos quartéis e que se transformaram, alguns deles, em tiranos, quando não se revelaram psicopatas.
Em boa parte das duas dúzias de obras que publicou — e que compreendem romances, livros de contos e de poemas, histórias para crianças, ensaios e textos de intervenção política —, Achebe dá testemunho do desencanto, da indignação e da tristeza com que acompanhou e sofreu o esgarçar da esperança. Um título, de 1986, destaca-se: “The anthills of the savanna” (“Os formigueiros da savana”, inédito no Brasil), um romance que pode ser lido, do mesmo modo que “El señor presidente”, do guatemalteco Miguel Ángel Asturias, como o relato da formação de um déspota, mas é, sobretudo, uma denúncia da falência dos políticos e intelectuais africanos de seu tempo.
Poucos meses antes de morrer, Chinua Achebe lançou um livro de memórias, “There was a country” (“Havia um país”, também inédito em português), em que conta, comovido, a história de Biafra, como pessoalmente a viveu. É um depoimento pungente e amargo, que em certos momentos assume o tom de elegia, sobre a tentativa de secessão dos ibos da Federação da Nigéria, a criação de um novo país, Biafra, e a guerra sangrenta e impiedosa que, durante mais de dois anos e meio, a isso se seguiu. Sem justificar nem perdoar os crimes cometidos durante o conflito, Achebe, que atuou com dedicação em favor de Biafra, reconciliou-se com a Nigéria e nela reencontrou a sua pátria — uma pátria em que o afligiam a inépcia e o egoísmo das elites governantes e todas as mazelas que descreveu em “Os formigueiros da savana”. Uma espécie de testamento, escrito no fim da vida, numa prosa admirável, “Havia um país” jamais nos deixará esquecer a tragédia da guerra de Biafra. E, com “O mundo se despedaça”, “A flecha de Deus”, “Os formigueiros da savana” e outras obras, Chinua Achebe nos ajudará a entender o que era, no século XX, ser ibo, nigeriano e africano.
Alberto da Costa e Silva é historiador , autor de “Imagens da África” e “A manilha e o libambo: a África e a escravidão”, entre outros. Prefaciou a edição brasileira de “O mundo se despedaça”, de Chinua Achebe, traduzida por Vera Queiroz da Costa e Silva
Artigo publicado originalmente em http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/04/27/chinua-achebe-a-africa-do-seculo-xx-por-alberto-da-costa-silva-494663.asp