Como teorias de relações internacionais ajudam a compreender o que ocorre no Leste Europeu. Por Guilherme Casarões
Analisar a guerra, assim como qualquer fenômeno internacional, exige dar conta de suas complexidades. A pobreza do debate em torno da invasão russa da Ucrânia reflete, em parte, certas incompreensões conceituais básicas: Estado x povo, poder x democracia, indivíduo x governo.
Quem lida por ofício com relações internacionais (professores, analistas, diplomatas) tem que ter esses conceitos claros. Para início de conversa, não há uma “teoria geral” das relações internacionais (RI). São várias vertentes que buscam dar conta das complexidades do mundo a partir de elementos diferentes. Toda teoria é uma simplificação da realidade que nos ajuda a descrever, explicar e prever o mundo.
REALISMO
A teoria de RI mais conhecida é o realismo. É a preferida dos pessimistas, que olham para a “vida como ela é” e que pensam o mundo a partir do egoísmo humano. Realistas basicamente enxergam um sistema internacional feito de Estados em permanente luta por poder e influência, diante de um mundo em que prevalece a lei do mais forte.
Para sobreviver, Estados precisam acumular poder. A busca da própria segurança causa insegurança nos outros. A consequência é o conflito e, se tudo der certo, algum equilíbrio de poder. Não há paz fora do equilíbrio.
Para realistas, a principal marca do mundo pós-Guerra Fria é a consolidação da hegemonia dos EUA. Eles expandiram sua presença militar pelo mundo, inclusive pela Otan (aliança militar ocidental), promoveram mudanças de regimes em países hostis, e nenhum país do mundo tinha poder ou interesse em pará-los.
Realistas, portanto, veem a Rússia como um país que declinou após o fim da Guerra Fria e que se sente insegura em suas fronteiras, graças à expansão (militar, econômica, cultural) dos EUA. Putin, nessa interpretação, busca limitar a ação americana em regiões sensíveis aos interesses russos, como Cáucaso, Oriente Médio e Leste Europeu. Por isso as ações militares na Geórgia (2008), na Síria (2011) e na Ucrânia (2014). E agora de novo.
Mas a Rússia estaria querendo garantir sua segurança, não causar uma guerra nuclear ou um genocídio. No conflito entre Rússia e EUA-Otan, o “endgame” de Putin é neutralizar a Ucrânia. Desmilitarizá-la e colocar um governo aliado da Rússia. É injusto com os ucranianos e vai contra suas aspirações nacionais e democráticas? Claro, mas é o que garante a estabilidade da região.
LIBERALISMO
Outra conhecida teoria é o liberalismo. Liberais costumam ser otimistas, pois acreditam no potencial do indivíduo e no progresso humano. Eles são entusiasmados com o avanço da democracia, do direito internacional e do livre comércio. Pensam que paz e prosperidade virão disso.
Existem várias correntes liberais em RI, cada uma com suas peculiaridades. Em geral, percebem o mundo para além dos Estados: esse sistema internacional é feito de múltiplas redes interconectadas de governos, empresas, ONGs, grupos transnacionais, sociedades e indivíduos.
Para liberais, a grande mudança (positiva) do pós-Guerra Fria foi a aceleração da globalização e a expansão da democracia. Ditaduras renitentes seriam derrubadas pelo capitalismo, por eleições ou pela força. O “mundo livre” poderia nos levar à paz perpétua em pouco tempo.
Desde 2008, pelo menos, liberais estão cada vez mais preocupados com algumas tendências globais. A democracia estagnou e está se fragilizando em vários países, inclusive no Ocidente; a globalização produziu descontentamentos políticos e econômicos; autocracias, dadas como fadadas ao fracasso, estão mais fortes que nunca. O retorno dos nacionalismos e o enfraquecimento da cooperação multilateral e da integração regional (como o brexit) dão a medida do pesadelo atual dos liberais.
Putin, nesse sentido, é mais um tirano que quer subverter os pilares da democracia liberal. Reprime seus próprios cidadãos, alia-se a outras ditaduras, como China, e usa sua máquina cibernética para fraudar eleições no Ocidente. Para evitar que os ventos da liberdade (UE-Otan) cheguem à Ucrânia, atropela o país vizinho e sufoca seu povo.
Para liberais, nesse conflito global entre democracias e autocracias, o objetivo de Putin é demonstrar sua força contra as democracias ocidentais, usando a Ucrânia como laboratório para o nascimento de um autocrata pró-Rússia, como ocorre na Belarus e no centro da Ásia.
A maioria da cobertura midiática (e do Twitter) olha para o problema pelas lentes liberais. Por isso mesmo, a guerra virou uma questão de tirania x liberdade, do Estado x indivíduos. A tragédia só acabará quando Putin, Xi Jinping e outros ditadores forem derrotados.
CONSTRUTIVISMO
Por fim, outra teoria muito debatida é o construtivismo. Ela percebe o mundo não a partir do poder, como realistas, ou do indivíduo, como os liberais, mas pelas identidades. Países e sociedades vão construindo narrativas e imagens de si próprios e dos outros, compondo esse panorama complexo das relações internacionais.
Construtivistas levam em conta aspectos culturais, históricos e discursivos para compreender, por exemplo, por que certos países são amigos, e outros, rivais, mesmo quando elementos como poder ou democracia sugeririam o contrário.
Para construtivistas, o mundo do pós-Guerra Fria foi marcado por uma transformação de identidades. Antes, países se uniam por afinidades ideológicas, capitalismo ou comunismo. Depois, outras identidades começaram a ganhar força: religião, cultura e história foram usadas para redesenhar o mapa do mundo a partir de novos alinhamentos.
Quem nunca ouviu falar na famigerada tese de Samuel Huntington sobre o choque de civilizações? Essa é uma aplicação, ainda que controversa e problemática, do argumento construtivista, na medida em que se defende que novos padrões de interação entre países decorrem de novas identidades.
Nesse mundo em que impérios parecem ressurgir (ao lado do império americano, temos o chinês, o russo, o hindu, o otomano), cada um deles quer defender seu espaço civilizacional num esforço para transformar o mundo num conjunto de civilizações lideradas por impérios, em que valores culturais e religiosos próprios prevaleçam. O construtivismo, nessa chave, ilumina por que noções como cristianismo x islã, Ocidente x Oriente voltaram à ordem do dia.
Putin seria mais que um ditador contra a democracia: seu projeto é o de reconstruir o império russo a partir da identidade eslava e do cristianismo ortodoxo, tendo ele como czar pós-moderno. Para isso, precisa solapar as bases da atual ordem internacional, que se baseia em valores liberais e cosmopolitas, em que temas como democracia e direitos humanos são centrais.
A estranha proximidade entre Donald Trump, Jair Bolsonaro, Putin, Viktor Orbán e Narendra Modi, entre outros, explica-se por esse antagonismo à ordem vigente —e o gosto pela civilização.
CERTO E ERRADO
Há três pontos fundamentais dessa longa introdução sobre teorias de RI:
Primeiro, conceitos diferentes levam a distintas percepções sobre a realidade. O entendimento do mundo depende da compreensão dos conceitos em jogo.
Segundo, não existe teoria absolutamente certa ou errada. Cada uma delas informa motivações e dinâmicas a partir das variáveis utilizadas. Cada um escolhe qual teoria abraçar a partir de afinidades éticas, ideológicas, intelectuais.
Terceiro, as decisões políticas também são tomadas, às vezes de maneira inconsciente, com base nessas simplificações teórico-filosóficas. Enquanto não houver uma discussão franca sobre como os principais atores envolvidos veem o mundo, qualquer solução será praticamente impossível.
Guilherme Casarões