Comportamento Candomblé é mistério, meu nego! por Tiganá Santana
Senhoras e senhores: são tempos de invasão ao
mistério. O chamado Ocidente (que não se trata de uma topografia), no elixir da
sua "Modernidade de Esclarecimento", soergueu em muitos dos seus pensadores e
pensantes uma racionalidade fálica e devastadora, a fotografar e estatizar o
dinamismo da realidade (e da supra-realidade).
Folhas, vento, modos, canto,
terra, astros… tudo se enquadrava nas categorias de evidência, resolubilidade
ou exclusão. O mistério excluía-se.
Ainda hoje vivemos espasmos desta Modernidade.
Acreditamos na infalibilidade do doutoramento… no que se diz ou escreve, a
partir de uma instituição. O que se crê em silêncio e, portanto, não pode ser
partilhado discursivamente na ágora, não poderá ser ou será sempre perseguido
pela suspeita suprema e imbatível do "real conhecimento". São tempos de
mistericídio.
Na Bahia, tem acontecido outra sorte de
assassínio deste mistério. Assomam-se às instituições de ensino (superior ou
não) os comunicadores artísticos que expõem ao entretenimento os cânticos
litúrgicos do Candomblé e religiões de matriz africana. Os "senhores da
diversão" tornaram cânticos, toques, danças, vestes e mesmo ritos de Candomblé
um conjunto circense para a apreciação carnavalesca de quem flerta, bebe e se
desorienta. Urge entender que não se trata esta de uma religião de proselitismo
e conversão, a utilizar-se das mais diversas estratégias para agregar fiéis.
Trata-se de uma religião de inerência – ainda àqueles que se originam de outros
sítios culturais.
Crê-se nas divindades dentro e fora do templo,
vivenciamo-las em nosso próprio corpo, mas as cultuamos no templo. Evocá-las
através dos cânticos requer preparação, configuração, contexto, entrega. Nem
tudo de negro é para divertir. Convença-se o mundo disto! Convença-se disto uma
Bahia que, ao longo de anos, ao lado do Rio de Janeiro, imprime ao "outro" um
conjunto imagético frágil, risível, multicromático, sexual e superficial de
culturas negras descendentes e precedentes.
O Candomblé é uma religião de mistério e
organização. Há o momento da fala e do calar; da iniciativa e da espera; do
colorido e do branco; da criança e do velho.
É mais louvável, legítimo e belo
que cantemos algo que se referencie no Nkisi, Orixá, Vodum, Caboclo do que a
reprodução literal das palavras ali vocalizadas dos cânticos deste próprio
Nkisi, Orixá, Vodum, Caboclo.
A arte, inclusive, é um delicado moinho de
interpretação e expressão de coisas que existem. Jamais poderá ser reprodução,
ainda que queira o artista.
Apropriar-se desta manifestação do sagrado e
sustentar-se financeiramente disto é colonialista demais. É importante que as
pessoas saibam do Candomblé. É claro e por razões inumeráveis, sólidas,
basilares. Entretanto há setores fundamentais que dizem respeito às pessoas que
são o Candomblé – e estas, certamente, não andam por aí conspurcando o seu
sagrado, o seu mistério.
Muitos religiosos neo-pentecostais aspiram a
magoar o coração daqueles que professam a religião do Candomblé. Não o farão.
São externos demais a este culto ancestral e presente.
Todavia aqueles que dizem
ser ou simpatizar com tal religião e a devassam na sua postura inadequada podem,
com esta "amizade inimiga", de fato, ferir o coração, o qual aqui assume o
sentido banto de interioridade (muxima, mutima, ntima). Em nome da bíblia, da
razão, da rentabilidade, todos confluentes para o lar de uma específica
ignorância, o mistério é fuzilado e o Candomblé resguarda-se a cada vez menos
pessoas efetivamente… afinal, são tempos de desprezo pelo mistério.
*Tiganá Santana é compositor,
cantor e xicarangoma do Terreiro Tumbenci (Lauro de
Freitas-BA).
Publicado originalmente em www.atarde.com.br/blog/