Aldeia Nagô
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Das pedras de Davi aos tanques de Golias por José Saramago

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura

"Afirmam algumas autoridades em questões bíblicas que o Primeiro Livro de Samuel
foi escrito ou na época de Salomão ou no período imediato, em qualquer caso
antes do cativeiro da Babilônia.


 Outros estudiosos não menos competentes
argumentam que não apenas o Primeiro, mas também o Segundo Livro de Samuel,
foram redigidos depois do exílio da Babilônia, obedecendo a sua composição ao
que é denominado por estrutura histórico-político-religiosa do esquema
deuteronomista, isto é, sucessivamente, a aliança de Deus com o seu povo, a
infidelidade do povo, o castigo de Deus, a súplica do povo, o perdão de Deus.

 Se a venerável escritura vem do tempo de Salomão, poderemos dizer que sobre ela
passaram, até hoje, em números redondos, uns três mil anos. Se o trabalho dos
redatores foi realizado após terem regressado os judeus do exílio, então haverá
que descontar daquele número uns 500 anos, mais mês, menos mês.
Esta preocupação de rigor temporal tem como único propósito propor à compreensão
do leitor a idéia de que a famosa lenda bíblica do combate (que não chegou a
dar-se) entre o pequeno pastor Davi e o gigante filisteu Golias anda a ser mal
contada às crianças pelo menos desde há 25 ou 30 séculos.

Ao longo do tempo, as
diversas partes interessadas no assunto elaboraram, com o assentimento acrítico
de mais de cem gerações de crentes, tanto hebreus como cristãos, toda uma
enganosa mistificação sobre a desigualdade de forças que separava dos bestiais
quatro metros de altura de Golias a frágil compleição física do louro e
delicado Davi.

Tal desigualdade, segundo todas as aparências enorme, era compensada, e logo
revertida a favor do israelita, pelo fato de Davi ser um mocinho astucioso e
Golias uma estúpida massa de carne, tão astucioso aquele que antes de ir
enfrentar-se ao filisteu apanhou na margem de um regato que havia por ali perto
cinco pedras lisas que meteu no alforje, tão estúpido o outro que não se
apercebeu de que Davi vinha armado com uma pistola.

Que não era uma pistola,
protestarão indignados os amantes das soberanas verdades míticas, que era
simplesmente uma funda, uma humílima funda de pastor, como já as haviam usado
em imemoriais tempos os servos de Abraão que lhe conduziam e guardavam o gado.
Sim, de fato não parecia uma pistola, não tinha cano, não tinha coronha, não
tinha gatilho, não tinha cartuchos, o que tinha era duas cordas finas e
resistentes atadas pelas pontas a um pequeno pedaço de couro flexível, no
côncavo do qual a mão esperta de Davi colocaria a pedra que, à distância, foi
lançada, veloz e poderosa como uma bala, contra a cabeça de Golias, e o
derrubou, deixando-o à mercê do fio da sua própria espada, já empunhada pelo
destro fundibulário.

Não foi por ser mais astucioso que o israelita conseguiu
matar o filisteu e dar a vitória ao exército do Deus vivo e de Samuel, foi
simplesmente porque levava consigo uma arma de longo alcance e a soube manejar.

A verdade histórica, modesta e nada imaginativa, contenta-se com ensinar-nos que
Golias não teve nem sequer a possibilidade de pôr as mãos em cima de Davi.
A verdade mítica, emérita fabricante de fantasias, anda a embalar-nos há 30
séculos com o conto maravilhoso do triunfo de um pequeno pastor sobre a
bestialidade de um guerreiro gigantesco a quem, afinal, de nada pôde servir o
pesado bronze do capacete, da couraça, das perneiras e do escudo.
Tanto quanto estamos autorizados a concluir do desenvolvimento deste edificante
episódio, Davi, nas muitas batalhas que fizeram dele rei de Judá e de Jerusalém
e estenderam o seu poder até a margem direita do Eufrates, não voltou a usar a
funda e as pedras.
Também não as usa agora.

Nestes últimos 50 anos cresceram a tal ponto as forças
e o tamanho de Davi que entre ele e o sobranceiro Golias já não é possível
reconhecer qualquer diferença, podendo até dizer-se, sem insultar a ofuscante
claridade dos fatos, que se tornou num novo Golias. Davi, hoje, é Golias, mas
um Golias que deixou de carregar pesadas e afinal inúteis armas de bronze.

Aquele louro Davi de antanho sobrevoa de helicóptero as terras palestinas
ocupadas e dispara mísseis contra alvos inermes; aquele delicado Davi de
outrora tripula os mais poderosos tanques do mundo e esmaga e rebenta tudo
quanto encontra na sua frente; aquele lírico Davi que cantava loas a Betsabé,
encarnado agora na figura gargantuesca de um criminoso de guerra chamado Ariel
Sharon, lança a "poética" mensagem de que primeiro é necessário esmagar os
palestinos para depois negociar com o que deles restar.

Em poucas palavras, é nisto que consiste, desde 1948, com ligeiras variantes
meramente táticas, a estratégia política israelita. Intoxicados mentalmente
pela idéia messiânica de um Grande Israel que realize finalmente os sonhos
expansionistas do sionismo mais radical; contaminados pela monstruosa e
enraizada "certeza" de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo
eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e
autorizadas, em nome também dos horrores passados e dos medos de hoje, todas as
ações próprias resultantes de um racismo obsessivo, psicológica e
patologicamente exclusivista; educados e treinados na idéia de que quaisquer
sofrimentos que tenham infligido, inflijam ou venham a infligir aos outros, e
em particular aos palestinos, sempre ficarão abaixo dos que padeceram no
Holocausto, os judeus arranham interminavelmente a sua própria ferida para que
não deixe de sangrar, para torná-la incurável, e mostram-na ao mundo como se
tratasse de uma bandeira.
Israel fez suas as terríveis palavras de Jeová no Deuteronômio:

"Minha é a
vingança, e eu lhes darei o pago". Israel quer que nos sintamos culpados, todos
nós, direta ou indiretamente, pelos horrores do Holocausto, Israel quer que
renunciemos ao mais elementar juízo crítico e nos transformemos em dócil eco da
sua vontade, Israel quer que reconheçamos de jure o que para eles já é um
exercício de fato: a impunidade absoluta.

Do ponto de vista dos judeus, Israel
não poderá nunca ser submetido a julgamento, uma vez que foi torturado e
queimado em Auschwitz. Pergunto-me se esses judeus que morreram nos campos de
concentração nazistas, esses que foram perseguidos ao longo da História, esses
que foram trucidados nos pogrons, esses que apodreceram nos guetos, pergunto-me
se essa imensa multidão de infelizes não sentiria vergonha pelos atos infames
que os seus descendentes vêm cometendo. Pergunto-me se o fato de terem sofrido
tanto não seria a melhor causa para não fazerem sofrer os outros.

As pedras de Davi mudaram de mãos, agora são os palestinos que as atiram. Golias
está do outro lado, armado e equipado como nunca se viu soldado algum na
história das guerras, salvo, claro está, o amigo americano. Ah, sim, as
horrendas matanças de civis causadas pelos chamados terroristas suicidas…
Horrendas, sim, sem dúvida, condenáveis, sim, sem dúvida. Mas Israel ainda terá
muito que aprender se não é capaz de compreender as razões que podem levar um
ser humano a transformar-se numa bomba."

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