Aldeia Nagô
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Diálogos… Chamem a juíza Karam! Por Ivana Bentes

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura

 
Assistir Meu Nome Não é Johnny
depois de Tropa de Elite é ótimo para perceber os discursos estéticos e
políticos que atravessam os filmes e seus personagens frente a questão das
drogas e da violência: de um lado o mais novo herói brasileiro, o garoto
propaganda da cerveja turbinado como Capitão Nascimento e defendendo a "moral da
tropa", a "boa" policia que destila ódio e ressentimento contra Ongs de
"menininhas bonitas bem intencionadas", demoniza jovens que fumam maconha
("quantas crianças vão para o tráfico para esse cara fumar um baseado") , e
rotula todos com a mesma insígnia de "inimigos públicos número 1": consumidores,
traficantes, policia corrupta, ongs, todos merecem um "corretivo" dos
camisas-preta.


O filme e o personagem não criam nenhuma brecha para
qualquer questionamento, a ação arrasta o espectador para um discurso regressivo
e vingativo, bastante popular, de culpabilização, moralismo e terror,
sintetizados na cena em que o Capitão Nascimento, enfia a cara de um consumidor
num cadáver ensangüentado berrando "veado, maconheiro é você que financia essa
merda!!!"

O prazer, o gozo regressivo do personagem em estado de
excitação vai produzindo uma comoção fácil na platéia, a verdade da fúria santa
e da "indignação", o mesmo tipo de denuncismo e indignados que a mídia não cessa
de repercutir e incensar, com a propagação de idéias e slogans simplórios,
"contra a corrupção", "contra dar dinheiro aos pobres", contra qualquer política
que crie uma real ruptura no estado das coisas.

Narrados na primeira
pessoa, os dois filmes constroem uma identificação imediata, cinematográfica,
entre o espectador e os personagens-narradores a partir desses momentos de
catarse. O Capitão Nascimento excitando nosso devir-fascista, com sua
"expertise", frases-feitas, camisa-preta e apologia da tortura, do extermínio e
celebração da morte. Ou seja, o terror de Estado legitimado cinematograficamente
e socialmente. E, de outro lado, o narrador-experimentador, João Estrela, também
falando na primeira pessoa do singular e partilhando seu devir-consumidor,
devir-traficante, devir-família, devir-presidiário, devir-careta, sem que nada
disso seja "incompossível", nem tenha que ser demonizado e negado.

A
primeira vítima da narrativa de Tropa da Elite é portando o espectador,
tornado refém da lógica do Capitão Nascimento e de Matias, aspirante a Capitão,
que só têm um devir: virarem assassinos fardados e arrastar o espectador no gozo
regressivo da repressão, da tortura, e da infantilização, o Bope é o "bicho
papão" de preto e caveira, fantasia carnavalesca que as crianças adotaram no Rio
de Janeiro, "e que vai pegar você".

O filme cola nesse discurso de tal
forma que é impossível não querer o que ele quer e não justificar suas ações. O
espectador se torna refém. Não é coincidência que o símbolo do Bope é a mesma
caveira-símbolo dos esquadrões da morte. A pulsão de morte e a adrenalina, o
gozo imperativo e soberano em ver, infligir e se expor a violência está presente
em todo o cinema de ação comercial, numa regressão planetária que reafirma a
"autoridade absoluta", o poder que normalizaria o caos e regraria a catástrofe,
mesmo que utilize para isso a violência e arbitrariedade máximas. Toda a
ideologia Bush, anti-terrorista, cabe aí. É o mesmíssimo discurso! A guerra
infinita, a guerra total permanente.

O dualismo e pragmatismo do
personagem do Capitão se repetem em cenas catárticas em que esculacha e sufoca
com um saco plástico gosmento de sangue um garoto do tráfico, chutado,
espancado, torturado, para passar mais informações. O filme justifica a tortura
da "boa" policia como parte de sua expertise e eficiência. A tortura é apenas
mais uma "tecnologia", como o Caveirão, totalmente justificada, "moralmente" e
cinematograficamente, como num "institucional do Bope", como já disseram.

Meu nome não é Johnny aposta num anti-Capitão Nascimento, um
anti-herói hedonista e sedutor, "no stress", que cheira para se divertir, para
amar, sem deixar de ser afetuoso, família, amigo, amante. A figura não-clichê de
João Estrela sugere que o pressuposto de "um mundo sem drogas" é no mínimo
hipócrita, e não leva em consideração a cultura e o desejo humano e um
componente importante no cenário contemporânea, o risco assumido e livre. Como a
gordura trans e o álcool, qualquer droga seria um "direito" do consumidor
contemporâneo. Por que não? 

É sabido que o consumo de drogas não fere
nem ameaça a rede social, é uma decisão, um risco individual. O consumo de
drogas não seria menos epidêmico e arriscado que o consumo de gorduras, aditivos
cancerígenos, miríades de estimulantes, calmantes, excitantes e no máximo
poderia ser um caso de saúde pública, não um caso de polícia se não houvesse a
ilegalidade na produção e consumo. 

É a ilegalidade e o proibicionismo
que levam a criação de sistemas violentos para assegurar a produção e comércio
das drogas. Grupos armados e para-militares para assegurar a produção e venda e
defender o negócio da polícia e de outros concorrentes, acertos de contas
internos, zonas de controle de territórios pela violência armada, corrupção,
subornos, assassinatos para assegurar a lavagem de dinheiro, cultura da delação
e da traição, delação premiada, produzindo ódio, desconfiança e vingança
generalizados.
Sobre a legalização das drogas, o Capitão Nascimento age como
uma toupeira. Essa hipótese não existe para o personagem, nem para o filme,
dramaturgicamente. Em Meu Nome não é Johnny a questão aparece de forma mais
interessante e complexa, mas não faz parte do mundo mental ou social dos
personagens.

As hipóteses e explicações nos filmes patinam em clichês já
sabidos (mas não custa repetir, Meu Nome não é Johnny é muito mais
sofisticado e sutil).

Afinal, por quê não circulam outros discursos
sobre as drogas, como os da juíza de direito Maria Lúcia Karam ou do advogado
carioca André Barros, que defendem e militam pela descriminalização, a
medicalização e a legalização das drogas, com avanços gradativos?

O
usuário podendo fazer uso de consumo individual, freqüentar salas de consumo,
ter acompanhamento médico e controle da qualidade do produto, até chegarmos a
legalização e controle do comércio de drogas, seja por empresas privadas ou pelo
estado.

Legalizar, defende a juíza, é quebrar o ciclo da violência das
armas, da corrupção (da policia, de políticos, de empresários), da guetificação
da violência e da repressão policial infringida às favelas e aos pobres, do uso
e extermínio da mão de obra infantil e de jovens, da degradação da saúde,
através do uso seguro, é romper um ciclo vicioso de violência já instalado.

Legalizar é acabar com a hipocrisia e combater a violência extrema e o
regime de exceção e arbitrariedade legitimados pelo Estado, pela polícia, pela
sociedade-anti-pobres e pelo tráfico, sócios na produção da atual barbárie.

Nem corrupção, nem omissão, nem guerra. A questão é de guerrilha, é não
ficar refém do Capitão Nascimento, é minar os clichês e discursos conservadores.
Chega de vingança regressiva, chamem a juíza Karam!
Ivana Bentes
Capturas

Ivana Bentes é pesquisadora da Escola de Comunicação da UFRJ, participa da rede Universidade Nômade.




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