Aldeia Nagô
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Drummond fascista misógino. Por Antonio Prata

3 - 4 minutos de leituraModo Leitura
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Na primeira aula de modernismo 1 a professora começa a escrever na lousa o “Poema de Sete Faces”, do Drummond: “Quando eu nasci, um anjo torto” — “esse verso é

problemático!”, ribomba uma voz do fundo da sala. Ela se vira e fica surpresa ao perceber que a voz tonitruante vem de um magricela que não parece ter mais de 18 anos. Ele a encara com um brilho nos olhos, o brilho dos que viram a luz

Com a segurança de um palestrante num TED Talks — coisa rara, antigamente, em  primeiranistas — o aluno explica: “Um anjo?! Sério?! Anjo é um elemento do catolicismo, é a religião opressiva do invasor. Esse verso aí reforça o colonialismo que massacrou e calou as religiões dos povos originários! Por que não: ‘Quando eu nasci, Anhangá’? Ou: ‘Quando eu nasci, Xolotl’? Ou: ‘Quando eu nasci, Wakan Tanka’?”

Os olhos da professora percorrem a classe em busca de alguma cumplicidade, uma piscadela que sussurrasse “esquece, ele é um mala, bola pra frente”, mas as expressões desafiantes sugerem é apoio ao magricela. “Bom, Drummond era de Minas Gerais, um estado muito católico. As referências do autor vêm do caldo cultural em que ele” —interrompem-na de novo. Agora é uma garota loira, que joga a ponta de sua keffiyeh palestina por cima do ombro e brada: “Claro: homem, hétero, cis e branco, só pode falar do próprio umbigo, mesmo, não é capaz de tirar a bunda do privilégio e ir até as periferias, até as comunidades, falar do Brasil real!”.

Já se passaram alguns minutos e estão empacados na quinta palavra do poema: a professora tenta contemporizar. “Vocês têm razão. São temas interessantes. Podem inclusive pensar em alguma coisa por aí pro trabalho de encerramento do curso. Agora vamos lá pro próximo verso” — “péra!”, ordena outro aluno. “Tem outra coisa que me incomoda, aí, mais até que o anjo: ele diz ‘anjo torto’. Torto, gente? Torto é capacitismo! ‘Torto’ é tão ofensivo pra uma pessoa com deficiência como manco, vesgo, anão, mudinho. Na boa, professora, mas foi uma escolha muito problemática do Drummond. Por que não, em vez de ‘anjo torto’, ‘Anhangá portador de deficiência’? Ou, pra não zoar a métrica, ‘Wakan Tanka PCD?’”

“Olha, pessoal, isso é um poema. Quando o eu lírico diz que o anjo é ‘torto’ ele não tá dizendo fisicamente ‘torto’. É metafórico. Vamos seguir com o poema que fica claro”, ela fala enquanto escreve na lousa, rapidamente: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.” Explica: “pra quem não sabe, ‘gauche’ em francês é esquerda, mas também canhestro, atrapalhado e” — um aluno se levanta, revoltado, no fundo da sala: “Ah lá! Esse homem branco, hétero, cis e colonialista vem falar em francês que ser de esquerda é errado!”. Uma garota se levanta também: “Drummond fascista!”. Outra emenda: “Sabia que ele traía a mulher?! Era um machista! Misógino! Poetas abusadores não passarão!”. A professora tenta, embalde, voltar à aula: “turma, turma, vamos primeiro terminar o poema?”. Um aluno grita “não é sobre poesia, é sobre decolonialismo!”.

A professora leciona há 40 anos. Teve aula com Antonio Candido e Milton Santos, resenhou Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu, mas percebe que nada do que disser ali fará qualquer diferença: eles vieram para ensinar, não para aprender, trouxeram a cartilha pronta e segundo tal cartilha, aparentemente, não há mais lugar na literatura brasileira para Carlos Drummond de Andrade. “Mundo mundo vasto mundo,” — ela pensa — “se eu me chamasse Raimundo/ Seria uma rima, não seria uma solução./ Mundo mundo vasto mundo,” — ela espera — “mais vasto é o meu coração”.

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