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Em vez de crítica Chico merece homenagem. Por Paulo Moreira Leite

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Difícil acreditar  que, num país onde o desemprego atinge 13 milhões de pessoas, a economia avança sem perspectiva e direitos históricos estejam no abismo,  tantos brasileiros e brasileiras tenham passado os últimos dias a falar mal de Tua Cantiga, música de Chico Buarque de Hollanda.

O barulho foi tanto que, neste momento, você deve saber do que se trata. Critica-se a música em função de um verso acusado de “machista”:

Quando teu coração suplicar, ou quando teu capricho exigir, largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir.

A crítica é que, com essas palavras, Chico mostrou-se solidário com maridos que, arrebatados de paixão, abandonam a própria mulher e a respectiva família para ir atrás de um novo amor.

É uma crítica tão absurda que o próprio Chico publicou uma resposta no face book, onde sublinha a hipocrisia das convenções que ensinam a manter um casamento infeliz a qualquer custo:

Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante?

– Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante.

Diálogo entreouvido na fila de um supermercado.

Não custa recordar o básico. Vivemos num país onde a Constituição assegura a liberdade de expressão num grau absoluto. Isso permite a todo mundo o direito de dizer o que pensa e é bom que seja assim. Pode-se criticar e pode-se rebater a crítica. É sempre um aprendizado.

Outro ponto diz respeito ao país. A primeira lei sobre o divórcio foi aprovado em 1977, com relativo atraso em relação a evolução dos costumes da época.

Mesmo assim, foi preciso aguardar pela carta de 1988 para que inúmeras restrições previstas na legislação anterior fossem abolidas, em mudanças que buscam assegurar a todos o direito de buscar a própria felicidade em todos os setores da existência — ideia que faz parte dos direitos humanos desde o século XVIII, mais ou menos.

Em países onde a poligamia era institucionalizada, foi preciso aguardar pela queda do Império Otomano, na Turquia, nas primeiras décadas do século XX, para que os haréns fossem proibidos.

Basta folhear a Origem do Estado, da Família e da Propriedade, para entender o valor dessa mudanças.

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A crítica destrambelhada a Chico Buarque deve ser um sinal desses tempos estranhos que vivemos, cujo traço maior são reversões de valor histórico. O mesmo movimento que esquartejou a Petrobras e quebrou os direitos trabalhistas repete-se na cultura. Atinge uma das maiores expressões da consciência do país, sem dúvida o principal personagem, em sua área, na resistência ao golpe que afastou Dilma sem crime de responsabilidade. Também foi — décadas mais jovem — uma voz essencial na luta contra a ditadura.

Chico Buarque é um gênio da música e cada vez mais da literatura,  não só pelo apuro estético de uma obra construída há mais de meio século, mas pelo alcance de sua visão sobre o Brasil e os brasileiros.

Não custa lembrar que demonstra uma exemplar empatia pelo sofrimento dos fracos e ofendidos.

Amadurecido numa época na qual o espírito patriarcal e preconceito contra a mulher era estimulado em rodinhas de conversa e programas de TV, enfrentou um ambiente de ignorância que várias vezes atingia a fronteira do ridículo.

Chegava-se a comentar, como se fosse uma suspeita grave, um desvio oculto, a teoria estapafúrdia de que sua identificação e conhecimento da realidade da mulher eram tão amplos, tão intensos, que Chico só podia ser gay.

(Como se recorda no impecável documentário “Chico: um artista brasileiro”, no início da carreira ele dava entrevistas onde era perguntado sobre isso. Suas respostas, num mundo muito diferente daquele de hoje, mostram um cidadão do mundo capaz de ser politicamente correto antes que se inventasse essa expressão que se tornaria um cacoete intelectual).

O detalhe é que Chico sempre foi capaz de ir além da condição convencional de observador de mulheres. Não era um voyeur nem um galanteador. Tinha (e tem) um olhar capaz de integrar-se, como poeta, à condição feminina, como se esta fosse uma segunda natureza, e a partir daí  examinar e celebrar um outro mundo, de forma corajosa e despudorada. Por essa razão, em sua música as mulheres não são personagens que desfilam para o desfrute masculino mas são senhoras de seu corpo, de seus desejos e seu destino. Emanciparam-se, entendeu?

Na dúvida, ouça mais uma vez a  deslumbrante Geni e o Zepelim, a mais bela declaração de amor à condição feminina que já ouvi, comovente hoje e sempre.

O que se ouve, sempre, são demonstrações de uma identificação que ultrapassa artificialismos, a partir de versos de quem  possui grandeza suficiente para sair  de si mesmo, o que é uma qualidade disponível apenas na obra de autores de valor universal, raridades em qualquer cultura.

Se houve uma evolução na condição feminina, no Brasil, ela se deve em primeiro lugar às mulheres, em segundo lugar às mulheres, em terceiro lugar às mulheres. Depois disso, é possível homenagear alguns homens. Um deles, sem dúvida, é Chico Buarque de Hollanda.

Artigo publicado originalmente em https://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/312995/Em-vez-de-cr%C3%ADtica-Chico-merece-homenagem.htm

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