Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

Gullar: decadência política de um grande poeta. Por Paulo Moreira Leite

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura
Paulo_Moreira_Leite2

Ferreira Gullar morreu com as honras de poeta pop no final deste infeliz 2016. Nem Ana Maria Braga deixou de citar um de seus versos na abertura do programa. (O papagaio José aproveitou a oportunidade para mandar um beijinho póstumo no ar).

Gullar foi um poeta com uma obra especial, com vários momentos de gênio. Impossível por exemplo ler Poema Sujo e deixar de se comover do primeiro ao último verso pelo ritmo, pela linguagem, pela coragem intelectual. É obra de leitura obrigatória, insubstituível. Recomendo ler e reler. Só ela  justifica as homenagens que já recebeu e deve receber nos próximos dias.

Mas Gullar passou a última década  como um ativista político radical, titular de uma coluna dominical na Folha que era dedicada, linha por linha, parágrafo por parágrafo, a uma tentativa de destruição sistemática do projeto Lula e tudo o que ele representou. Jamais exibiu, nesse terreno, a grandeza que mostrava na poesia. Pelo contrário.

Com uma experiência política que não autoriza reações ingênuas, Gullar aplaudiu a perseguição ao ex-presidente e não se permitiu um resmungo de protesto diante da “encenação”, como diz Joaquim Barbosa,  que derrubou Dilma Rousseff e produziu a mais grave ruptura institucional do país desde 1964. Não denunciou  a “encenação.” Fez parte dela, como quadro privilegiado de uma tropa de choque articulada e bem ensaiada. Numa avaliação franca, sem hipocrisia, é difícil deixar de reconhecer que, todos os méritos criativos à parte, o alinhamento político tenha contribuído — e muito! — para a consagração obtida nos anos finais junto aos grandes meios de comunicação, a começar pela Globo em todas suas versões.

Num discurso frequente em cidadãos com seu histórico político, Gullar foi um quadro importante no Partido Comunista Brasileiro e  costumava justificar o novo comportamento a partir de um argumento hoje clássico: a noção de que nos dias de hoje não existem mais diferenças importantes entre esquerda e direita no espectro político. Jamais decifrou, contudo, um obscuro enigma: se não havia diferenças entre uns e outros, por que seus ataques sempre se dirigiam apenas a políticos que uma visão tradicional colocaria à “esquerda” e nunca se voltavam contra a “direita.”

Em fevereiro de 2011, entrevistei Ferreira Gullar no programa Roda Viva, que tinha Marília Gabriela como âncora. Num dos bons momentos de um  programa que ameaçava transformar-se num palanque tardio de ataques e críticas a Lula e Dilma, que acabara de ser eleita para o primeiro mandato, coloquei uma questão que sempre me incomodou. Perguntei se ele admitia que havia um certo ressentimento de veteranos do comunismo — como ele — neste comportamento excessivamente crítico, para usar termos amenos. Lembrei que, afinal de contas,  ele também pertencera ao mesmo espectro político de esquerda quando se tornara uma personalidade pública. Repetindo a visão que nivela esquerda e direita no mesmo nível de qualidades e defeitos, Gullar anunciou  a derrocada dos partidos que haviam liderado a luta contra a ditadura, como PT e  PSDB, e o surgimento de uma geração de políticos que lhe pareciam aprumados para liderar o país do futuro. Falou em três nomes. Anotem: Aécio Neves; Sérgio Cabral; Eduardo Paes.

De certa maneira, a postura de Gullar lembra a anedota daquele cidadão de Hiroshima, que se encontrava no banheiro na hora em que o Enola Gay despejou a bomba atômica na cidade — e imaginou que tudo aconteceu depois que resolveu apertar o botão de descarga. Gullar entrou para o PCB oito anos depois que tropas soviéticas invadiram a Hungria, que procurava defender sua autonomia frente a Moscou e Nikita Kruschev já havia denunciado os erros e crimes de Stalin num relatório histórico. Os expurgos da década de 30, marco de execuções sumárias de dissidentes que se prolongaram pelas décadas seguintes, eram um fato conhecido. A data de sua filiação — 1964, após o golpe — honra a biografia de qualquer pessoa. Mas quatro anos depois as tropas do Pacto de Varsóvia invadiram a Checoslováquia para destruir a Primavera de Praga e nem assim ele concluiu que a diferença entre esquerda e direita havia terminado.

A leitura de um clássico de Norberto Bobbio, um social democrata culto e moderadíssimo, mostra que as distintas visões de mundo entre esquerda e direita envolvem prioridades, valores e interesses que estão muito além de episódios históricos, por mais relevantes que possam ter sido, na Revolução Francesa, na Revolução Russa, antes, durante ou depois da Guerra Fria. Isso porque a luta contra a injustiça e o anseio de igualdade e liberdade sempre farão parte da existência humana — e é definindo-se em torno dessas questões que uma pessoa é obrigada a, assumindo um lado, colocar-se à direita ou à esquerda.  Mais do que um trabalho da razão, o esforço para apagar diferenças e contradições de vulto sempre funcionou como um atalho para acomodações delicadas, com base na moda ideológica nascida na Queda do Muro de Berlim, como o fim da História e o pensamento único.

A teoria de que a diferença entre esquerda e direita perdera o sentido é filha dessa época. Foi o argumento que ajudou a justificar uma derrota imensa e prolongada do projeto nascido em outubro de 1917. A visão de que a esquerda perdera sentido ganhou urgência quando ser de esquerda, para muitos dirigentes, tornara-se sinônimo do próprio fracasso.

Gullar globalizou-se em todos os sentidos. Inclusive no Jardim Botânico.

Apenas um condenável pensamento totalitário admite que uma pessoa pode ser condenada em função de suas opiniões políticas. A crítica, quando isenta de preconceitos, é um instrumento indispensável para o avanço da cultura de um país.

Os tumultos e viradas da História humana produzem realinhamentos políticos tão frequentes como inesperados, alimentando travessias que é mais produtivo tentar compreender do que julgar, até porque muitas possuem um caráter provisório, sujeito a novas alterações e reviravoltas. A experiência  de povos e países está recheada de exemplos a respeito.

Para ficar num caso distante do Brasil, que não tem a menor relação com Ferreira Gullar nem com sua trajetória. Mas ajuda a entender a dimensão que essa discussão assumiu no século XX em diante.

Militante corajoso das brigadas revolucionárias que defenderam Barcelona contra o ataque das tropas fascistas durante a guerra civil espanhola, o inglês George Orwell produziu páginas inesquecíveis sobre um episódio que marcou a experiência política de sua geração. Também produziu um romance, 1984, que contém elementos inspiradores para a discussão sobre as ditaduras stalinistas. No fim da vida, contudo, Orwell tornou-se uma versão inglesa do macarthysmo, abandonando a debate político para entregar listas de nome de militantes apontados como suspeitas de simpatias comunistas ao estado britânico, consciente de que os dados chegariam ao  serviço de informação. É o que se aprende  nas páginas 320 e seguintes do livro “Quem Pagou a Conta — A CIA na Guerra Fria da Cultura, ” onde a pesquisadora  Frances Stonor Saunders faz um revelador  levantamento sobre o recrutamento e patrocínio de intelectuais no pós-Guerra, mostrando os delicados movimentos que se assiste na luta por ideias.

WILTON JUNIOR

Artigo publicado originalmente em http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/268929/Gullar-decad%C3%AAncia-pol%C3%ADtica-de-um-grande-poeta.htm

Compartilhar:

Mais lidas