Ignorância basta. Por Suzana Herculano-Houzel
Meu colega Stuart Firestein, neurocientista da Universidade Columbia, em Nova York, escreveu um livrinho delicioso chamado “Ignorance”, no qual argumenta que a ciência não é movida a conhecimento, e sim a ignorância.
Concordo plenamente. Stuart nos lembra que o renascimento começou justamente quando o homem aceitou que os dogmas religiosos não explicavam tudo, reconheceu sua ignorância sobre como as coisas funcionavam – e resolveu investigar.
É a investigação movida pelo reconhecimento da ignorância que leva ao descobrimento. Quando a investigação é feita de maneira sistemática, documentada, levantando e testando explicações alternativas até que reste apenas uma que resista ao escrutínio, os resultados são os fatos que constroem o conhecimento científico. O único pré-requisito para o descobrimento é a curiosidade que se segue às duas palavras mais importantes que um cientista pode dizer: “Não sei”.
Como é movida a ignorância, a ciência não tem como prever seus caminhos. É possível ter uma área de concentração, claro: estudar como o cérebro funciona ou deixa de funcionar, por exemplo. Mas as verdadeiras aplicações da ciência surgem quando fatos desencavados graças à ignorância de um cientista alimentam novas investigações que atendem à ignorância de outros.
Há quem diga que a ciência básica é inútil, como parte do Congresso norte-americano que publica o infame “Wastebook” (o “livro do lixo”), um rol de despesas do governo que eles consideram “desperdício de impostos”. O senador Jeff Flake, por exemplo, debochava da pesquisa de Sheila Patek, bióloga da Universidade Duke, sobre um tipo de crustáceo que rompe a casca rígida de moluscos com socos minúsculos.
Até que Sheila foi convidada a apresentar seu trabalho no Congresso, e pôde conversar pessoalmente com o senador – que ficou fascinado. Com a bióloga, o senador descobriu como ciência e tecnologia andam de mãos dadas. Não teríamos radares se não fosse a pesquisa aparentemente inútil sobre como morcegos caçam no escuro. Não teríamos superadesivos se cientistas não tivessem passado anos observando lagartixas
subirem paredes. Os minissocos poderosos do crustáceo agora inspiram novos modelos de capacetes ultrarresistentes.
O senador, quem diria, agiu como um cientista: reconheceu sua ignorância sobre a pesquisa básica – e mudou de ideia
Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo