Individualismo e Barbárie por Dante Lucchesi
Três cenas que aconteceram hoje pela manhã, em Ondina, bairro nobre de Salvador, no lapso de menos de um minuto. Um motorista para seu automóvel na faixa de saída obrigatória à direita para evitar a fila de carros na faixa para seguir em frente.
O sinal de virar à direita abre enquanto o sinal de seguir em frente permanece fechado, e o tal motorista continua parado, obstruindo a passagem dos carros que pararam atrás dele, apesar das buzinas e protestos, porque ele acha que seu “direito” de furar a fila está acima do direito dos demais motoristas de seguir quando o sinal abre. No sinal seguinte, o motorista de uma van de uma empresa de turismo (portanto, um motorista profissional) avança sem cerimônias o sinal vermelho, que favorece aos pedestres. Entrando na Avenida Beira-Mar, tenho de reduzir drasticamente a velocidade do meu veículo, que trafegava na velocidade prevista na via, para não atropelar um pedestre que temerariamente atravessou correndo na minha frente, em um ponto absolutamente impróprio (esses fatos aconteceram realmente dessa maneira, não foram criados como mote para este texto).
Está redondamente enganado quem pensa que esses fatos de somenos não têm ligação com o episódio atroz, ocorrido na mesma avenida do bairro de Ondina, há poucos dias, no qual uma médica assassinou dois jovens irmãos, ao persegui-los e arremeter deliberadamente seu automóvel de luxo contra a moto em que estavam os dois infelizes, em alta velocidade.
Todos esses episódios, um gravíssimo e outros que passam despercebidos todos os dias, derivam de uma mesma mentalidade que permeia e deteriora a sociedade brasileira: a de que a lei foi feita para os outros, e cidadania é o meu direito de fazer tudo que é do meu interesse sem nenhum dever ou compromisso com o bom andamento das relações sociais e o bom funcionamento da vida em coletividade.
Situa-se, então, no plano da história das mentalidades os priores reflexos do nosso atraso cultural, derivado do terrível processo de mais de trezentos anos de escravidão oficial, que afligiu a sociedade brasileira até pouco mais de cem anos atrás. O mal funcionamento das instituições e dos órgãos públicos, no plano social, reforça tal mentalidade (garantindo a impunidade a quem não cumpre as regras), ao tempo em que esse mal funcionamento é alimentado por uma manifestação dessa mesma mentalidade: a de eu não tenho que cumprir minhas obrigações profissionais porque minhas condições de trabalho são precárias e eu sou explorado (mais uma vez está presente o substrato da escravidão: afinal era legítimo o escravo sabotar ou tapear no trabalho, porque era escravo). Portanto, há uma relação dialética entre a nossa miséria mental e o nosso atraso social.
Podemos, então, pensar que são sequelas da escravidão que explicam o comportamento abominável da médica no episódio de Ondina. Seu comportamento é típico de nossa elite econômica, que, do alto do fausto, da ostentação e do esbanjamento derivados da super exploração do trabalho, acham que podem tudo e não aceitam ser minimamente contrariados, sobretudo pelos que são socialmente inferiores, que ainda são vistos pelos membros dessa casta como seres sem alma, como o eram os escravos africanos. Essa médica, ao assassinar os dois irmãos, com seu potente automóvel de luxo contra dois jovens indefesos numa moto, na sequência de uma discussão de trânsito, agiu como uma sinhá da casa grande que espanca até a morte uma negrinha escrava que ousou fazer-lhe uma malcriação. Escorou-se ainda no sentimento generalizado de impunidade, pois, por sua condição social, ela pensa que está acima da lei, que só deve servir para supliciar os pobres que se insubordinam.
Coincidentemente, ela pertence à classe dos médicos, que têm tentado sabotar e inviabilizar um programa governamental de levar assistência médica aos mais necessitados, apenas para perpetuar seus privilégios corporativos. Muito sintomático também, nesse sentido, foi alguém que disse que uma médica cubana, trazida pelo governo brasileiro, não podia atuar no Brasil, porque tinha cara de empregada doméstica, e não de médica. Foram abominavelmente corporativistas também as manobras dos médicos do Hospital Aliança, que, segundo foi noticiado, protelaram indevidamente a alta da médica, que sofreu ferimentos leves ao perpetrar o seu crime, apenas para impedir que a colega fosse pressa – o que sói acontecer com as pessoas que cometem crimes em sociedades civilizadas. Noticiou-se até que uma tentativa de fuga, usando uma ambulância do SAMU, foi tentada sem sucesso. Ou seja, o sentimento de impunidade que levou a médica a cometer crime tão terrível, não era infundado, sua casta e corporação estão aí para defender todos seus privilégios, até o de matar por motivo fútil.
Médicos e Hospital Aliança deveriam ser processados criminalmente por obstrução da justiça, caso essas notícias sejam provadas. Ocorre que não soube nada sobre isso, e, ao que parece, a impunidade continua, no que concerne aos poderosos. Mas nem tudo está perdido, devido à indignação e à pressão popular, a médica sinhá já está na Penitenciária Lemos de Brito. Só que ninguém garante que a justiça será feita, se novas medidas protelatórias ocorrerem, o interesse da grande mídia em faturar com caso diminuir, e o clamor popular arrefecer. Como já disse aqui, a ineficiência da justiça no país está dialeticamente relacionada à perpetuação de sua mentalidade escravista.