Aldeia Nagô
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Lamentações de um pequeno editor de literatura à beira da falência, por Sebastião Nunes

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura
Sebastiao_Nunes

Sei que o país inteiro está à beira da falência, por conta desse governo interino que nos atormenta. Sei que a educação foi para o espaço e que tão cedo não teremos de volta os programas de incentivo à leitura, perpetuando a ignorância e o analfabetismo funcional de 80% da população.

Sei que a violência só faz aumentar, pois não é crível que pequenos e grandes marginais não percebam que, se os poderosos podem furtar milhões impunemente, cabe a eles uma fatia desses milhões, nem que seja à custa de bala e sangue. Sei que a luta de classes só vai piorar nesta República das Bananas, com o aprofundamento do abismo entre os mais ricos e os mais pobres.

Sei que está tudo uma merda, mas sou um pequeno editor de 77 anos e tenho de falar do meu caso.

ATESTADO DE MAUS ANTECEDENTES

A partir de 1968 publiquei 10 livros de poesia experimental para adultos e outros cinco de ficção também experimental. (Uma relação do que fiz em quase 60 anos de trabalho pode ser vista em https://pt.wikipedia.org/wiki/Sebasti%C3%A3o_Nunes)

Burrice minha, claro: se a literatura convencional tem poucos admiradores neste Bananão, o que dizer da experimental, que exige um pouco mais da pacência do leitor? Claro que tenho leitores, mas minhas edições raramente passam de 1.000 exemplares, mesmo porque praticamente todos os meus livros foram editados com ajuda de amigos, pelo antigo método da subscrição, prática que resgatei dos séculos XVIII e XIX.

Naturalmente, continuo bastante conhecido entre escritores, por um poema aqui, um fragmento de prosa ali, um trecho numa coletânea de poetas marginais. Mas não pelo conjunto da obra, o que inevitavelmente aconteceria caso eu tivesse nascido nos EUA ou na Europa que, com todos os seus defeitos, possuem culturas sólidas.

Quando fundei a Dubolsinho, em 2000, imaginei que poderia unir o que sempre foi o núcleo de meu trabalho intersemiótico – texto e imagem – em livros inteligentes e instigantes para a garotada. Escritor, artista gráfico e diagramador desde sempre, eu estava com a faca e o queijo na mão. Era só começar e deitar e rolar. Doce engano!

Estava esquecido de que literatura é vista como um produto igual aos outros – um sabonete, um pé de alface, um sanduíche – e que era preciso “vender” o meu peixe ou, pelo menos, divulgá-lo bastante, participando de concursos, fazendo amizade com outros editores, me associando a entidades editoriais. Ou seja, procurando ser mais um “queridinho da mídia”. Foi o que tentei fazer, engolindo sapos, deixando o mundo da marginália de lado e me inserindo no, digamos assim, mundo institucional.

 

ATESTADO DE BURRICE

Toda a minha literatura adulta é agressiva, transgressora, intersemiótica, feroz e grotesca (do italiano “grotto” = gruta, pequena caverna = ridículo, feio, esquisito etc.). Os que gostam do meu trabalho, sendo sincero e imodesto, adoram. Quem não gosta diz que minha poesia, por exemplo, não tem pé nem cabeça.

E é então que, de repente, pulo de uma linguagem tosca e pesada, muitas vezes recheada de palavrões, para o campo politicamente correto da literatura para jovens.

Demorei a entender que, nessa nova seara, hipocrisia era a regra. Você tem de ser sempre a favor, jamais contra. Mesmo que você defenda uma causa, tem de ser uma causa politicamente corretíssima. Você tem de ser bonitinho, limpinho, engraçadinho e capaz de produzir textos que sejam chamativos, não exatamente para as crianças, mas para pais, professores, educadores e, principalmente, para os que selecionam os livros que as crianças “podem” ler. Todo mundo sabe o que aconteceu com Monteiro Lobato – e ainda bem que ele não está vivo para não se assustar com tamanha estupidez.

UMA COISA É OUTRA COISA

Com algum espanto, vendi alguns milhares de livros para o Governo de São Paulo em 2002, apenas dois anos após a fundação da Dubolsinho. Vendi um pouco mais entre 2003/14 e fomos indo, devagar e sempre, até que em 2005 tivemos alguns livros selecionados simultaneamente pela prefeitura de Belo Horizonte e pelo FNDE/MEC. Não fosse pela qualidade dos livros, seria como ganhar na loteria.

Entre 2005 e 2012 continuei editando e crescendo, embora devagar, até comprar um galpão para a futura sede e instalar a editora em 2012, com uma pequena equipe de sete pessoas, contando comigo e um divulgador em São Paulo.

Demorei a perceber que a crise vinha a galope, e só em 2015, já pendurado em bancos e devendo até as barbas, decidi dissolver a equipe e voltar ao eu-sozinho dos tempos de poeta marginal. Mas então o buraco estava fundo e não fui capaz de escapar. Todos os programas do MEC foram paralisados, os estaduais e municipais sumiram ou minguaram. E o varejo – no qual nunca fui bom – passou de mal a pior. A Dubolsinho ameaçava falir, o que não chega a ser novidade no Brasil entre pequenas empresas.

ONDE FOI MESMO QUE ERREI?

Comecei a participar, ainda em 2000, de entidades ligadas ao livro. A gigante Câmara Brasileira do Livro, a pequena Câmara Mineira do Livro, o minúsculo CEM – Clube de Editoras Mineiras, este fundado na sala de minha casa. Ao longo dos anos percebi que sua diferença para qualquer outra entidade era zero. Se eu imaginava que lidar com livros tornava as pessoas melhores, caí do cavalo. Presenciei cenas toscas e degradantes, vi que mesquinharia, desonestidade e má-fé são regra geral em qualquer entidade de qualquer coisa.

Quando fiz 70 anos – velho gato escaldado – desisti de tudo e de todos, e voltei a ser um solitário Quixote da literatura. Decidi retrabalhar minha literatura adulta e levar a Dubolsinho à minha maneira: sem concessões ao politicamente correto e às regras do bom-mocismo. Voltei ao “ou vai ou racha”, meu lema preferido, principalmente depois de ver que praticamente todos os editores tratavam literatura como mercadoria = fonte de lucro = qualidade é quantidade = merda também é cultura.

Em 2012, quando as vacas eram gordas, fundei três novas empresas: a Aaatchim! Editorial, o Instituto Cultural Dubolsinho e a Dubolso Digital. A Aaatchim!, nos moldes da Dubolsinho; o Instituto, para gerenciar projetos socioculturais; e a Dubolso Digital para cuidar de e-books e livros de literatura adulta, entre eles os meus, em nova formatação: tecnologicamente falando, o mundo havia mudado – e como!

E assim estou eu, paralisado, enquanto a crise, como uma tempestade, continua a afundar a economia do Bananão e, com ela, pequenas, médias e grandes empresas.

Pessoalmente, aos 77 anos (com 62 deles dedicados a ler e criar literatura, pois comecei a me “tornar escritor” aos 15), acho uma pena parar por aqui, tendo de fechar as empresas e me dedicar à vida de aposentado de livros e de sonhos.

P.S.: Quando lancei a Dubolsinho, criei para ela o slogan “Criança não é um idiota pequeno, mas pode ser o projeto de um idiota grande”. Muita gente torceu o nariz na época e depois, mas continua sendo o que penso sobre crianças e adultos. Com toda a sua ingenuidade, curiosidade e maldade gratuita, as crianças são o que os adultos serão quando forem o que tiverem de ser. Se o ser humano é apenas um animal feroz, pouco se pode fazer. Pessoalmente, continuo a pensar que o papel da boa literatura é ajudar no longo, penoso e dramático esforço de transformação do homem em algo melhor do que esses ridículos personagens de classe média e essa horrível caricatura chamada elite.

O solzinho, marca da Editora, colorido por mim, é uma gravura  de 1493 em p&b do alemão Conrad Dinckmur, anterior, portanto, à chegada dos portugueses no Brasil.

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Artigo publicado originalmente em http://jornalggn.com.br/blog/sebastiao-nunes/lamentacoes-de-um-pequeno-editor-de-literatura-a-beira-da-falencia-por-sebastiao-nunes

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