Lava Jato: irregularidades debaixo do tapete, por Marcelo Auler
Ao entender que não há elementos suficientes que provem a materialidade do crime de falsidade ideológica no Inquérito Policial (IPL) 01/2017-COAIN/COGER (autos 5003191-72.2017.404.7000) e determinar o seu arquivamento, o juiz Nivaldo Brunoni, da 23ª Vara Federal de Curitiba, ajudou a jogar para debaixo do tapete da Lava Jato mais uma investigação em torno das possíveis ilegalidades cometidas pela Força Tarefa de Curitiba.
Curiosamente a decisão do juiz, no final de agosto/início de setembro – a imprecisão na data é decorrência de o inquérito tramitar em segredo de Justiça – foi anunciada com antecedência pelo Ministério Público Federal (MPF) do Paraná. Quando da nossa publicação – MPF-PR e Moro barram investigações contra PF-PR – em 23/08, o Blog recebeu da assessoria de imprensa do MPF nota na qual dizia:
“O arquivamento possui fundamentos diversos, depoimentos e outros meios de prova, tendo sido homologado pelo Juiz, que não viu motivo para não arquivar, nem qualquer irregularidade no procedimento adotado pelo MPF. O procedimento permanece sob sigilo, portanto os procuradores não vão se manifestar em detalhes”. (grifo nosso).
Mas, até a noite daquela quarta-feira (23/08), data em que a nota nos foi enviada, o juiz não só não tinha dado nenhum despacho nos autos como estava fora de Curitiba. Tal e qual reportamos em: Lava Jato anunciou decisão antes de o juiz assiná-lo. Momento em que divulgamos as explicações de uma das duas servidores da 23ª Vara Federal com as quais o Blog conversou:
“Não tem decisão. Ele (o juiz) não tem decisão nesse processo. No processo que é o 500319172 (o numero completo é 5003191-72.2017.404.7000) não há decisão do dr. Nivaldo. Não há decisão de arquivamento. Essa informação que o senhor tem e menciona aqui no pedido…, não tem uma decisão de arquivamento ainda. Há um pedido, não é? Mas não uma decisão“.
Justiça em segredo? – Dias depois, como o Blog apurou, a decisão de Brunoni deferiu o principal pedido dos procuradores: o arquivamento das investigações. Com isso o grampo ilegal colocado na cela 4 da custódia da Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal no Paraná (SR/DPF/PR) no início da Operação Lava Jato (17 de março de 2014) voltou a ter uma redoma. Permanece blindado.
Procurado pelo Blog – antes de tomar a decisão que o MPF já anunciava como certa – com um pedido para conhecer seu despacho, uma vez que decisões judiciais, em regra, devem ser públicas, Brunoni negou-nos o acesso (veja resposta na reprodução do e-mail abaixo).
O IPL em questão, a princípio, investigava o possível crime de falsidade ideológica que o Agente de Polícia Federal (APF) Dalmey Fernando Werlang teria cometido, em 2014, ao preparar um “laudo técnico” para a sindicância que deveria investigar como o grampo foi parar no forro do teto da cela (Sindicância 04/2014 SR/DPF/PR). Neste parecer ele disse que a escuta encontrada pelo doleiro Alberto Youssef não funcionava.
Ao fazer constar do parecer que “nas condições atuais o conjunto apreendido (transmissor, fonte e cabos) se ainda instalados, não teria qualquer funcionalidade”, o APF Werlang deu ao delegado Mauricio Moscardi Grillo, que presidiu a primeira sindicância sobre o grampo, os argumentos para concluir que o aparelho estava inativo.
Com isso, a Força Tarefa da Lava Jato em Curitiba imaginava que afastava definitivamente a possibilidade de questionarem a validade da Operação como um todo. O grampo foi instalado sem a devida autorização judicial o que, em tese, permitira arguir a legalidade de tudo o que foi apurado a partir das declarações do doleiro.
Não se pode realmente dizer que Werlang mentiu. Na verdade, alegou que “nas condições em que estava”, o aparelho que lhe foi entregue não teria utilidade. Mas não explicou que antes de ser arrancado do teto o “grampo” poderia estar funcionando. Tanto assim que houve gravações, posteriormente recuperadas.
Em maio de 2015, o próprio Werlang – como mostramos em Lava Jato revolve lamaçal na PF-PR -, assumiu a instalação do grampo ilegal na cela. Em seu depoimento – reproduzido naquela postagem – e nos depoimentos que prestou na CPI da Petrobras bem como na nova Sindicância – Sindicância 04/2015 COAIN/COGER/DPF -, ele deu novos detalhes.
Insistiu que a ordem para instalar a escuta – que ele desconhecia ser clandestina – partiu de três delegados. Citou nominalmente Igor Romário de Paulo, chefe da Delegacia Regional de Combate ao Crime Organizado (DRCor), Rosalvo Ferreira Franco, o superintendente da regional, e Marcio Adriano Anselmo, que chefiava a Força Tarefa da Lava Jato na SR/DPF/PR. Falou ainda do pedido do delegado Moscardi para que preparasse um parecer técnico sobre a aparelhagem, inclusive se referindo a escutas anteriores instaladas na custódia.
Conteúdo desconhecido – Como demonstrou a perícia do próprio DPF, no computador de Werlang foram encontradas mais de 260 horas de gravação de conversas naquela cela. A perícia só foi realizada na segunda sindicância.
Pela análise do conteúdo dos áudios, os peritos concluíram que se tratava de diálogos entre os presos da Lava Jato, como narramos na já citada postagem MPF-PR e Moro barram investigações contra PF-PR.
Até hoje, porém, o conteúdo destas gravações não foi tornado público. Não se sabe, por exemplo, a relação deles com o “convencimento” posterior do doleiro Youssef em fazer uma delação premiada. Aliás, muito bem premiada.
Estranhamente, o Ministério Público Federal do Paraná e a SR/DPF/PR evitam a todo custo que se remexa nesse e em outros casos que tragam à tona irregularidades cometidas pela Força Tarefa da Lava Jato. Isto pode ser visto como uma atitude de autodefesa. Evita-se o questionamento da legalidade de tudo o que foi feito.
O próprio juiz Sérgio Moro ao arquivar a investigação sobre as denúncias da ex-contadora do doleiro Youssef, Meire Poza – IPL nº. 05/2016-COAIN/COGER (autos nº. 5053382-58.2016.404.7000) – conforme noticiamos na reportagem citada acima -, deu sua contribuição para que não se remexesse em possíveis irregularidades cometidas pela Polícia Federal.
Foram diversas denúncias de irregularidade como demonstrado na postagem do blog, em junho de 2016, Enfim, a contadora e informante infiltrada da Lava Jato foi ouvida oficialmente.
O arquivamento dos dois casos foi pedido pelos procuradores regionais da República Antônio Carlos Welter e Januário Paludo. Lotados junto ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), em Porto Alegre, eles atuam como reforço da Força Tarefa em Curitiba. Por força da lei, deveriam exercer o controle externo da polícia. Mas, aparentemente, adotam medidas que evitem investigações detalhadas.
Os dois queriam que o juiz Brunoni declinasse da competência do IPL para o juiz Moro. Defenderam que por se tratar de um caso relacionado à Lava Jato, não deveria ter tramitação autônoma, mas ser distribuído por prevenção. Não conseguiram. Obtiveram, porém, o principal: a paralisação da investigação.
Assim, mais uma vez as possíveis ilegalidades da Lava Jato foram jogadas para debaixo do tapete.
Quem saiu vencido foi o delegado Márcio Magno Xavier, da Coordenadoria de Assuntos Internos da Corregedoria Geral do Departamento de Polícia Federal – COAIN/COGER, que presidia a investigação. Ele insistiu junto à 23ª Vara na continuidade da investigação.
Consta que considerou a manifestação do MPF como “atípica” e precipitada. Afinal, ela ocorreu sem que diligências fossem concluídas e contradições esclarecidas.
Contradições permanecem – O inquérito, embora apurasse o possível delito de falsidade ideológica, certamente acabaria resvalando em outras descobertas. Como, por exemplo, a confirmação da denúncia de Werlang de que a ordem de instalação do grampo partiu dos três delegados mencionados acima.
Ao que tudo indica, o delegado Alfredo Junqueira ao presidir esta segunda sindicância não teve como evitar a confirmação do funcionamento do grampo por conta da descoberta dos peritos – seguindo as indicações do próprio Werlang – das 260 horas de gravações.
Mas Junqueira deixou de pedir perícia no servidor utilizado para armazenar dados do Núcleo de Inteligência Policial (NIP) da SR/DPF/PR onde mais detalhes poderiam ser descobertos. Como também não foram periciados os computadores dos delegados Marcio Anselmo Adriano e Erika Mialik Marena, que recebiam, segundo Werlang, as gravações captadas pelo grampo.
Junqueira também não aprofundou divergências em depoimentos. A agente de polícia federal Maria Inês Paris Slussarek, que assumiu ter instalado o grampo junto com Werlang, contradisse o próprio superintendente do DPF no Paraná. Segundo Rosalvo, no dia em que o grampo foi recapturado na cela (10 de abril de 2014) , não houve qualquer diálogo com a agente. Mas, como destacam os procuradores da República no pedido de arquivamento do inquérito, é outra a versão de Maria Inês,
“no dia em que foi descoberta a escuta na cela de ALBERTO YOUSSEF, foi chamada a comparecer em sala na qual estavam presentes o DPF IGOR, o DPF ROSALVO, o DPF MARCIO ANSELMO e o APF PRADO; II) o Superintendente DPF ROSALVO queria saber se o equipamento de escuta pertencia ao DPF ou a terceiros; III) reconheceu o equipamento como sendo um daqueles que pertenciam ao DPF; IV) ante sua resposta, ninguém perguntou quem ou como tal equipamento teria sido colocado na custódia, tendo presumido que todos estavam cientes da escuta ambiental que instalou na custódia da SR/PF/PR junto com o APF DALMEY; V) causar-lhe-ia estranheza caso alguém fizesse a pergunta sobre como o equipamento do DPF teria sido instalado na Custódia e sobre os servidores que teriam feito isso, pois no seu entender o trabalho de instalação da escuta na cela de ALBERTO YOUSSEF era legítimo;” (grifo nosso)
Há contradições, também não exploradas por Junqueira, no que disse o delegado Moscardi na segunda sindicância, com relação a um contato com os peritos da própria Polícia Federal.
Consta do depoimento do delegado que presidiu a sindicância apontada como dirigida para não confirmar o funcionamento do grampo, que ele “teria feito contato informal com os peritos que trabalham na SR/DPF/PR para saber o que poderia ser informado em um eventual laudo. Que diante do informado pelos peritos, que disseram que as informações não seriam “profundamente técnicas”, decidiu solicitar uma informação técnica ao NIP/SR/DPF/PR, já que ali trabalhariam pessoas com conhecimentos sobre o assunto“.
Ao deporem no IPL presidido por Magno Xavier, que o MPF conseguiu agora arquivar, quatro peritos e a então chefe
Núcleo de Tecnologia da Informação da SR/PF/PR, Magda Aparecida de Araújo Kemetz, hoje aposentada, rechaçaram esta informação de forma unânime. Segundo se depreende da leitura da manifestação dos procuradores regionais, os quatro foram categóricos ao afirmarem que:
“I) tomaram conhecimento sobre a descoberta de equipamento de escuta ambiental na cela ocupada por ALBERTO YOUSSEF na custódia da SR/PF/PR pela imprensa; II) não foram procurados por qualquer servidor policial para tratar de eventual perícia no equipamento encontrado; e III) a PCF MAGDA nunca falou que teria sido procurada por outros servidores policiais para tratar sobre possível perícia no referido equipamento de escuta ambiental.” (grifo nosso)
Com base no que escreveram os procuradores, Magda foi incisiva no depoimento ao delegado Magno Xavier:
“não foi procurada por qualquer servidor da SR/PF/PR, integrante ou não da Administração ou da Força Tarefa da Operação Lava Jato, para conversar sobre eventual confecção de laudo do equipamento de escuta ambiental encontrado”.
Trabalho mal feito – Embora não tenha explorado estas contradições, inclusive as de Moscardi com os peritos, Junqueira apegou-se à falta de perícia técnica no aparelho encontrado para propor em seu relatório final um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra Moscardi, como também já noticiamos aqui no Blog em Armação Federal II: “indisciplinas” do DPF Moscardi.
Destacou pelo menos três transgressões disciplinares previstas na Lei 4878/1965 cometidas pelo delegado que conduziu a primeira sindicância. Esta lei é conhecida como Regime Jurídico Peculiar aos Funcionários Policiais Civis da União e do Distrito Federal. Uma espécie de regimento interno. Com base no art. 43 da lei – são transgressões disciplinares – o relatório final da segunda sindicância aponta que o trabalho de Moscardi se encaixa no que está previsto nos incisos:
…VIII – praticar ato que importe em escândalo ou que concorra para comprometer a função policial;
…XX – deixar de cumprir ou de fazer cumprir, na esfera de suas atribuições, as leis e os regulamentos; e
…XXIX – trabalhar mal, intencionalmente ou por negligência;
A sugestão de Junqueira acabou acatada pelo diretor geral do DPF, delegado Leandro Daiello Coimbra. Isto, após ser analisada por três delegados diferentes. Destes, apenas um, o parecerista da Corregedoria, Ademir Dias Cardoso, discordou dela.
Já o Coordenador de Disciplina, Luis Eduardo Melo de Castro, e o Corregedor Geral, Roberto Mario da Cunha Cordeiro, endossaram a sugestão do Processo Administrativo Disciplinar (PAD) que acabou referendada por Daiello Coimbra, como mostra o despacho ao lado, que editamos na ilustração.
O surreal é que é esta a sindicância que os procuradores Paludo e Welter dizem ser a que deve prevalecer.
Eles recusam a conclusão técnica da sindicância refeita pelo delegado Junqueira da COAIN/COGER, provavelmente por confirmar o grampo. Para isso, como mostramos na postagem MPF, para esconder grampo ilegal, lança versão incongruente, usaram uma argumentação bastante contraditória: a de que os áudios poderiam ter sido captados por celulares que foram encontrados – três meses depois – em poder dos doleiros na cela.
Tudo para justificar a tese defendida pelo MPF de Curitiba de que o que tem valor é a investigação presidida por um delegado que, segundo seus colegas do próprio DPF – incluindo o diretor geral -, no mínimo, trabalhou mal, intencionalmente ou por negligência.
O fato é que a decisão do juiz Brunoni acabou por impedir que uma investigação em curso prosseguisse, inclusive com novos depoimentos capazes de gerar informações que, provavelmente, levariam aos autores da ordem de instalação do grampo ilegal.
Meire confirma Lula? – Por tudo que tem sido demonstrado, o receio dos operadores da Lava Jato é justamente deixar que o delegado Magno Xavier trabalhe. Sabe-se, por exemplo, que no Inquérito em que ele apurava as denúncias da ex-contadora Meire Poza era sua pretensão fazer busca e apreensão na sala que o então delegado Marcio Anselmo ocupava (hoje ele atua no Espírito Santo como corregedor da Superintendência do DPF no estado).
A decisão do juiz Brunoni, que vem sendo mantida em segredo, ainda que não tenha tido essa motivação, enterrou, mas uma vez, as chances de se esclarecer diversos comportamentos da Força Tarefa que sugerem práticas pouco ortodoxas.
Como o caso narrado por Meire Poza de que os autos de apreensão de buscas realizadas – como a que foi feita no seu escritório para “esquentar” documentos que já estavam com a polícia -, eram elaborados tempos depois. Quando tal fato acontece, é possível, por exemplo, que se enxerte documentos que não estavam no local da busca.
Pode ter acontecido na busca e apreensão realizada em 4 de maio de 2016, na casa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Relembre-se, por exemplo, que no primeiro depoimento de Lula ao Sérgio Moro, em 10 de maio, lhes foram apresentados papéis que ele garante que não tinha conhecimento. Na ocasião, quando questionado pelo magistrado, o ex-presidente recomendou que ele perguntasse sobre tais documentos a quem os encontrou, pois ele, dono da casa, os desconhecia.
Levantando o tapete – Uma nova chance de esclarecer tais fatos pode surgir na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que pretende investigar as delações premiadas. Será uma boa oportunidade, por exemplo, para convocar a ex-contadora de Youssef, Meire Poza, bem como requisitar à COAIN/COGER as investigações que a Força Tarefa da República de Curitiba, fez questão de jogar debaixo do tapete.
Meire hoje é processada em Curitiba, junto ao juiz Moro, por lavagem de dinheiro na Ação Penal nº 5056996-71.2016.404.7000. Na manifestação em sua defesa, como narramos em “Delatora” pede a Moro anulação da Lava Jato, o advogado Conrado Almeida Corrêa Gontijo a classifica como a “primeira delatora” de toda a Operação Lava Jato. Colaborou, sem que lhe fosse dado direito à presença de um advogado e sem que lhe apresentassem uma proposta de Delação Premiada, o que, segundo seu defensor, justifica a anulação de toda a Operação.
Mas ela também teve papel importante em convencer os primeiros presos da Lava Jato – notadamente o núcleo de doleiros e seus assessores – de recorrerem à delação premiada. Nas conversas que teve com o Blog, assumiu, inclusive, a responsabilidade por ter levado o seu ex-patrão, Youssef, à delação premiada. Motivo suficiente para que seja levada à CPI que quer investigar como ocorreram estas delações.
Certamente, é tudo o que os operadores da Lava Jato em Curitiba, bem como o hoje já ex-procurador-geral, Rodrigo Janot, não desejam que aconteça.
Assim, o tapete será levantado e surgirão todos os lixos ali remetidos ao longo dos três anos da Operação Lava Jato, contribuindo definitivamente para esclarecer tais casos e, muito provavelmente, afastar possíveis questionamentos da legalidade da mesma. Tudo de acordo com o Estado Democrático de Direito.
Artigo publicado originalmente em http://marceloauler.com.br/lava-jato-irregularidades-debaixo-do-tapete/