Luiz Melodia: linguagem que uniu inovação formal e poder de comunicação. Por Leonardo Cazes
Se apenas um adjetivo fosse utilizado para classificar o projeto estético do cantor e compositor Luiz Melodia, morto ontem, esse seria “singular”. Bebendo em diversas tradições, mas sem se filiar a nenhuma, o filho ilustre do bairro do Estácio conseguiu combinar experimentação formal e alto poder de comunicação.
Para o poeta Bernardo Vilhena, Melodia alcançou o objetivo desejado por muitos poetas, que nem sempre têm sucesso: romper com o discurso sem perder o sentido. Foi assim que versos como os de “Pérola Negra” — “Rasgue a camisa, enxugue meu pranto/ Como prova de amor mostre teu canto/ Escreva num quadro em palavras gigantes/ Pérola Negra, te amo, te amo” — se tornaram grandes sucessos.
— Nas letras, ele consegue, de uma maneira muitíssimo rara, romper com o discurso corrente sem perder o sentido. Então, ele traz imagens absolutamente pessoais, uma coisa muito própria dele. A construção dos versos é muito própria. Essa quebra do discurso é perseguida por muitos poetas, nem sempre com êxito, mas no caso dele é impressionante porque traz elementos de um novo vocabulário para uma poesia de altíssima voltagem — afirma Vilhena.
As principais canções de Luiz Melodia
‘Pérola negra’
Ainda um jovem e desconhecido compositor do Morro do Estácio, Luiz foi descoberto pelos poetas Torquato Neto e Wally Salomão. Foi Wally que sugeriu que Gal Costa gravasse a canção ‘Pérola negra’ em seu álbum ‘Gal a todo vapor’, de 1972. Nessa época assume o sobrenome artístico Melodia, também usado por seu pai, Oswaldo.
Vilhena conviveu com o compositor e foi testemunha da admiração que o também poeta Waly Salomão, amigo de ambos, nutria por Melodia. Salomão, junto a Torquato Neto, foi fundamental para que o compositor fosse gravado por Gal Costa no disco “Gal a todo vapor”, de 1971. Vilhena destaca ainda que Melodia surgiu numa época muito rica para a música brasileira, quando vários poetas-letristas brilhavam.
— Aquele foi um momento da música brasileira de uma qualidade poética impressionante, com Caetano, Chico, Gilberto Gil, e vindo da bossa nova que tinha ninguém menos que Vinicius de Moraes. Luiz Melodia traz uma nova dicção nesse momento, em meio a esses craques. Esse é o ponto mais fundamental — aponta Vilhena, para quem a obra de Melodia é “a grande essência do psicodelismo urbano e suburbano carioca e brasileiro”. — Eu acho que o maior diálogo da poesia do Melodia é com ele mesmo. São versos muito especiais.
OUTRA LINHAGEM DA MPB
Para o sociólogo e crítico musical Marcos Lacerda, “é como se Melodia surgisse do nada e, no fundo, fosse a síntese aberta de tudo”. Para ele, o compositor do Estácio é protagonista de uma linhagem de artistas da música brasileira que não se filiam a nenhum movimento estético ou movimentação cultural específica, ao lado de nomes como Raul Seixas, Belchior, João Bosco e Ronaldo Bastos. Esse grupo, segundo Lacerda, não tem nada a ver com os embates entre o tropicalismo e certa “linhagem nobre” da MPB, que inclui Edu Lobo, Chico Buarque e Francis Hime, pois são a expressão de algo novo.
— Melodia traz ecos dos sambas cariocas da época de ouro, dos timbres jazzísticos das grandes canções americanas e da experimentação formal já incorporada à criação das canções, sem a necessidade da exposição e do estardalhaço dos tropicalistas, por exemplo. A música de invenção na canção de Luiz Melodia é um dado assombrosamente natural, a experimentação está incorporada à canção — afirma o crítico. — Não se trata de uma derivação do que aconteceu na década de 1960, nem via tropicalismo nem via MPB tradicional.
Lacerda chama a atenção para 1973, o ano em que Melodia lançou seu primeiro disco, “Pérola Negra”. Nesse mesmo ano, vários discos emblemáticos foram lançados: Fagner, com “Manera Fru Fru manera”; Raul Seixas, com “Krig-ha, bandolo”; e João Bosco, com “João Bosco”, que trazia as canções “Bala com bala” e “Amon Rá e o cavalo de Troia”. No ano anterior, o álbum “Clube da Esquina” já tinha apresentado a geração de compositores mineiros, como Fernando Brant e Ronaldo Bastos.
— Ou seja, 1973 é um momento histórico de inflexão estético-formal na canção popular feita no Brasil. A poética de Luiz Melodia é parte disso, protagonista decisiva do processo — afirma o crítico. — Os tropicalistas devem muito mais a Melodia do que o contrário. Ou melhor, a poética de Melodia, assim como a de Raul Seixas, João Bosco e Aldir Blanc, Ronaldo Bastos e Belchior, abrem um clarão que supera o impasse colocado pelos tropicalistas na relação com a linhagem nobre da MPB de Chico Buarque e Edu Lobo.
Pesquisador e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Júlio Diniz afirma que o encanto que Melodia provocou em Waly Salomão, Gal, Bethânia e muitos outros artistas com o seu trabalho se deve ao diálogo que o compositor estabeleceu com as tradições do Morro do São Carlos, do Estácio, da MPB e a “horda tropicalista, nossos doces bárbaros”, resultando em uma “doce e ferina transgressão”.
— Ele sempre soube captar as ondas, misturar as coisas, expressar a força que a canção popular tem no Brasil — diz Diniz. — Melodia é uma personagem híbrida, culturalmente mestiça, a voz negra que fala de um entrelugar da cultura brasileira. Com todo o seu swing, sua ginga, poesia, musicalidade, sensibilidade, maneira de cantar, ele consegue transitar do local ao global, dos morros cariocas às ruas do mundo, da herança musical brasileira às sonoridades contemporâneas.
Para o professor, Melodia carregou em si “o sentimento do mundo”, para recorrer a expressão do poeta Carlos Drummond de Andrade.
— No meio de tantas obras-primas, alguns versos se destacavam e me emocionavam profundamente. Eles falam de tentativas e não de certezas, de invenção e não de mesmice, de pequenos gestos e não de revoluções — afirma Diniz.
Luiz Melodia, aos 21 anos, em 1972Foto: Arquivo / Agência O Globo
Artigo publicado originalmente em https://oglobo.globo.com/cultura/musica/luiz-melodia-linguagem-que-uniu-inovacao-formal-poder-de-comunicacao-21671761