Aldeia Nagô
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Lula é o cara por Marcelo Carneiro da Cunha

6 - 8 minutos de leituraModo Leitura

É dura a vida de colunista e escritor. Não adianta eu falar, insistir, berrar
aqui nesse espaço ou onde mais me deixarem à solta. Tem que vir o Obama pra
dizer em alto e bom inglês que o Lula é o cara, Lula is the man, e aí sim, a
imprensa repete aos milhões, o Fernando Henrique tem um choque anafilático de
tanta inveja e todo mundo cai na real.

Isso não significa que eu não
tenha críticas ao Lula ou ao partido. Minha relação com eles é mais ou menos a
que eu mantenho com as mulheres: gostaria que fossem muito diferentes, mas,
olhem só as alternativas! Vivemos em um mundo real, com defeitos reais,
consequências infelizes da nossa humanidade.
 
Compreender esse mundo e governar para ele, tentando ao mesmo tempo
torná-lo melhor, com direito a alguma quantidade de sonho, é o que diferencia um
político competente de um estadista. E Lula é um estadista, o maior que já
tivemos.

Eu acho que boa parte desse preconceito contra o Lula é
preconceito mesmo, do ruim. Olhem o que eu ouvi ontem mesmo de uma moradora de
um bairro nobre daqui. Ela explicou que não torce para o Corinthians, porque,
afinal "tenho todos os meus dentes e conheço o meu pai". Uffff.

Lula, por
exemplo, que mal conheceu o pai, na infância, e não sei quanto aos dentes, mas
sei quanto aos dedos, torce para o Corinthians. E eleger o Lula foi um momento
sublime para os brasileiros porque ele representou a nossa aceitação de nós
mesmos por nós mesmos, condição essencial para uma nação ser algo maior do que
um mero país. Eleito, Lula nos libertou e o Brasil deu o salto que todos vivem,
mesmo que não queiram ver.

Na América Latina, e eu leio a imprensa dos
nossos vizinhos, Lula é idolatrado como um grande líder nacional, que ama seu
povo e se dedica a defender os seus interesses, ao mesmo tempo em que tenta
sinceramente ajudar e integrar os que nos rodeiam. Somos admirados por que
passamos a nos levar a sério e deixamos de puxar o saco do primeiro mundo, como
fazia o nosso pomposo FHC. Barramos espanhóis (inocentes, claro) na fronteira
exigindo tratamento decente aos nossos viajantes que entram na Europa. Lula não
tem medo de ninguém e exige estar no G-20, mas junto com o G-8, ou onde quer que
se decida alguma coisa.

Lula ajudou Chávez a sobreviver e hoje o enche de
elogios, enquanto sabota seus piores planos e ajuda o Brasil a vender e ganhar
muito com a Venezuela. Garantiu o empate na quase guerra de araque entre
Colômbia e Equador, fazendo o Brasil atuar como o líder que tem que ser. Lula
abriu agências da Embrapa em países africanos, onde nossa biotecnologia tropical
vai ajudar a combater a fome e criar uma agricultura moderna.
Ele também
decidiu que não vamos exportar petróleo do pré-sal, coisa de país atrasado, e
sim derivados com alto valor agregado. Isso não é lá visão geopolítica e
estratégica? Viajou aos países árabes, nunca antes assunto para nossos
governantes e criou laços que hoje se transformam em comércio, bom para
todos.

Aqui dentro, já que o Brasil também é assunto, manteve sim a
política econômica anterior, mas lhe deu a direção social que faltava. E se
alguém acha que isso foi coisa pouca, imaginem as pressões que Lula sofreu, às
quais teve que resistir, enquanto a Argentina, aqui ao lado, experimentava
heterodoxias com o Kirchner e crescia 10% ao ano. Imaginem o que foi para um
ex-torneiro mecânico peitar toda a suposta elite econômica instalada nos
principais veículos de comunicação, que tentavam dizer a ele para onde apontar o
nariz e que aprendesse a obedecer ou o mundo iria cair, culpa dele. Quem resiste
a tudo e segue firme no caminho em que acredita é um líder. L-Í-D-E-R. Acerta e
erra, mas lidera.

O maior mérito do Brasil de hoje é nosso, do povo
brasileiro. Fomos nós que soubemos mudar, acabar com o PFL, optar pelo moderno
e, por isso, hoje nosso destino se divide entre dois partidos e projetos
viáveis, PSDB e PT. Se os dois são viáveis, o PT é mais generoso, e por isso a
minha escolha.

Provavelmente seguiremos crescendo e nos afirmando como
nação moderna e emergente, capaz de alimentar a si e ao mundo, o que para mim já
está uma beleza, obrigado. Mas, alguém aí ousa comparar o Lula a gente um tanto
insípida, inodora e incolor, como Aécio, Serra e mesmo a Dilma?
Vamos talvez
seguir rumo à prosperidade, mas de um jeito tão mais sem graça. Vocês conseguem
imaginar algum desses nomes acima fazendo a frase sobre "banqueiros brancos e de
olhos azuis, que achavam que sabiam tudo de economia" que hoje é repetida no
mundo inteiro?

Lula, para mim, representa o fim do enorme desperdício que
nosso país sempre praticou, ao ignorar a humanidade e inteligência do seu povo,
acusando-o de ser pouco escolarizado. Eu tenho o privilégio de, de tempos em
tempos, encontrar com leitores de grupos de EJA (Educação de Jovens e Adultos),
na prática turmas de pedreiros, domésticas, carpinteiros, eletricistas; gente
que deixou a escola quando criança e voltou agora, para aprender, inclusive, a
ler. E ser lido por essas pessoas é uma enorme honra para um escritor que gosta
de ser lido. E eles leem como ninguém, minha gente. Com uma garra e encantamento
de arrepiar. E raramente têm a chance de trazer essa visão absoluta do mundo,
essa experiência toda a para vida do nosso país. Lula, prezados leitores, fez e
faz exatamente isso.

Eu conheço meu ilustre pai, para o bem ou para o
mal, tenho praticamente todos os dentes e certamente todos os dedos, o que me
coloca em uma camada, digamos, privilegiada, no Brasil. Mas, mesmo que não seja
exatamente a minha cara, Lula consegue ser a cara brasileira da minha alma, de
tantas outras almas de nosso país e, por isso mesmo, ele é, tem sido e vai ser o
cara. O Cara, a nossa cara.

Pelo que eu conheço do mundo, essa coluna vai
atrair toda uma desgraceira pra cima desse colunista. Pois, muito bem, que
venha. Esperar menos do que isso, estar menos preparado do que estou para
combater o que vier, seria um desrespeito desse cidadão agradecido aqui, ao seu
presidente, a quem tanto admiro e por quem tenho mais é que brigar mesmo. Podem
vir, serão todos bem recebidos, e vamos em frente, nós e o Cara, fazer o debate
e o país de que tanto precisamos.

Dizer "Esse é o cara" afirma a
negritude do Obama e sua admiração por Lula. Vivemos melhor em um mundo assim,
de aceitações, reconhecimentos, sinceridades. Se eles, que são políticos, podem,
então a gente pode tudo, até mesmo torcer para o Corinthians, imagino, nesse
admirável mundo novo que o século 21 nos traz.

Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e
jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em
Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos
"Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o
romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois
longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e
"Antes que o Mundo Acabe".

Artigo publicado originalmente em:  www.terramagazine.terra.com.br 

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