Meu cachorro Atahualpa. Por Urda Alice Klueger
Por
muitos e muitos anos eu não quis ter em minha casa sequer uma planta, para não
estar preocupada em quem a regaria quando fosse viajar – imaginem se passava
pela minha cabeça ter um animalzinho! Então um dia… pois é, sempre tem um
dia!
Passei de manhã numa agropecuária, e havia duas jaulas
cheias de cachorros e cachorrinhos para serem doados. Dei uma espiada, e ele me
"pescou" na hora, com seu olhinho maroto e seu rabinho que parecia um fio de lã
preta abanando. Mas se eu não queria nem sequer uma planta na minha
casa…
Fui
embora, mas era como se não tivesse ido. Talvez aquele tenha sido um dos dias
mais complicados da minha vida. Não conseguia tirar aquele bichinho da minha
cabeça – e se eu ficasse com ele? Tinha lá também uma irmãzinha dele, preta e
branca, e havia cachorrinhos "de raça", mas era aquele vira-latas peludinho
preto quem me cativara, e a partir do meio dia o meu pensamento já era outro: se
ninguém o tivesse pegado até o final da tarde, eu iria ficar com ele. Depois de
tal decisão, outra se impunha: que nome dar ao bichinho? Não podia ser um nome
qualquer, e fiquei divagando entre os nomes mais bonitos que conhecia,
principalmente os dos meus heróis da Literatura, e por pouco ele não veio a se
chamar Capitão Rodrigo. A História se impunha, também, e a força desta minha
América tão amada, e pensa de cá e pensa de lá, e cheguei em Atahualpa, o último
imperador Inca, aquele que foi traiçoeiramente assassinado pelo invasor espanhol
– Atahualpa nascera do amor, fora um grande imperador… sim, sim, só restava
saber se eu iria ter, mesmo, o cachorrinho.
Esperei até dez para as seis para voltar à agropecuária,
e descobri que TODOS os animais que estavam lá para doação, naquele dia, tinham
arranjado dono e ido embora – todos menos um cachorrinho que estava abandonado
lá no canto de uma jaula, abanando um rabinho que parecia um fio de lã preta do
tamanho de um dedinho de bebê – foi um momento mágico, aquele, quando peguei
Atahualpa no colo, embrulhei-o num florido pano vermelho e fui com ele até o
carro, mostrando-lhe o que havia ali por fora e começando nossa primeira
conversa:
–
Olha só, Atahualpa, veja como o mundo é grande! – e fui me exibir com ele para a
minha amiga Dina, perto dali.
Era
seis de dezembro, dia de São Nicolau, importante dia da minha cultura, quando as
crianças colocam o sapato na janela para ganhar chocolates, balas e castanhas de
São Nicolau. Para mim, era como se eu tivesse botado o sapato na janela
também!
Nos
dias seguintes, descobri o quanto Atahualpa era fraquinho, como estava doente,
com desinteria, e houve momentos em que entrei em pânico, porque o Natal se
aproximava e os veterinários estavam saindo de férias e os hoteizinhos estavam
lotados por causa dos feriados e eu tinha que ir para Florianópolis lançar um
livro, e então Atahualpa ficou mal mesmo, e consegui um veterinário que o
atendeu – e desfez toda aquela bobagem de que cachorro moderno só pode comer
ração: mandou-me para casa dar-lhe arroz com frango, aos pouquinhos, para que
ele não vomitasse de novo. Fui para a cozinha com o coração na mão, e quando
ficou pronto aquela comida nova, ele a devorou com tal ferocidade, e ficou
latindo e me olhando com tal ódio por não lhe dar tanto quanto queria, que até
hoje lembro dos seus olhinhos negros tão cheios de indignação e raiva que pensei
que poderiam me matar.
Aos
pouquinhos, ele foi melhorando, mas foi só a 24 de dezembro, manhã de Natal, que
acho que ele ficou bom. Levei-o a dar uma voltinha na calçada, e de repente ele
encontrou um grande pedaço de lingüiça abandonada em algum lugar, e
apoderando-se dela, rosnou para mim e mostrou-me os dentes, e fugiu com a
lingüiça para debaixo de um automóvel, e lá, esbarrando no meu desespero,
devorou aquela lingüiça toda num instante, deixando-me morta de preocupação,
lembrando das lingüiças com veneno que gente malvada espalha por aí para matar
cachorrinhos incautos. Voltei com ele para casa para poder observá-lo: se ele
comera veneno, logo começaria a passar mal, e haveria que correr ao veterinário
para abreviar a sua agonia, mas o dia passou e nada aconteceu.
Então, naquela noite de Natal, eu tinha que ir a duas
festas, e deixei meu cachorrinho comer tanto churrasco, banha e lingüicinha
quisesse, e depois disso ele nunca mais ficou doente. Faz pouco mais de três
meses que está comigo – não passava de um bife, quando veio – tinha 800 gramas e
um rabinho de fiapo de lã. Agora é Páscoa, e virou um rabudo de palmo e meio de
rabo tão grosso quanto o meu polegar, e nesta semana estava pesando seis quilos,
e desenvolvi músculos novos nos braços de tanto carregá-lo para atravessar as
ruas e coisas assim. Está com cinco meses, e não imagino o quanto ainda irá
crescer. Que parceria que fomos arranjar, não,
Atahualpa?