Minha adorável quarentena 136. Por Marcílio Godói.
Quando Caetano começou a tocar ‘Milagres do povo’, primeira música da live de seu aniversário, todo o Brasil pensante em isolamento social, não sei o que me deu, desandei a chorar, igual menino. Quer dizer, sei: lágrimalegria, pétalas de Iemanjá, Iansã-Oiá ia.
Tive a impressão exata do que ele quis deixar expresso na abertura: “E o povo negro entendeu / que o grande vencedor / Se ergue além da dor. / Tudo chegou / sobrevivente num navio / Quem descobriu o Brasil? / Foi o negro que viu / a crueldade bem de frente / E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente…”
Isso foi num dia em que vimos pelas redes um motoboy sofrer mais um dos graves ataques racistas que se espalham pelo país, e me bateu o que Caetano quis de cara mostrar com a sutileza de suas escolhas.
Logo em seguida, cantou ‘Tigresa’, “onde a gente e a natureza, feliz, vivam sempre em comunhão e a tigresa possa mais do que o leão.” seguida de ‘Sampa’: “do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas, na força da grana…”
Enfim, eu poderia ficar aqui costurando as faixas escolhidas, seus textos e subtextos, suas falas homenageando Morais Moreira, Gil, Milton, Augusto de Campos, Tom Zé, os filhos, o “homem velho, rei dos animais” sempre desenhando com sua gravidade de sábio e “a alma saturada de poesia, soul e rock and roll”, o nosso desespero de pátria jogada à própria sorte.
Mas foi quando ele denunciou o massacre indígena e a devastação da floresta amazônica com ‘Luz do Sol’, “marcha o homem sobre o chão, leva no coração uma ferida acesa” e ‘Um índio’, que a gente viu que o buraco era mais embaixo: “E aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio”. Aí não tive como não chorar, de novo, em contrição.
Mais adiante, quando veio ‘Nu com a minha música’, uma esperança renasceu em quem estava assistindo a live, bobo embevecido como eu: “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor / Vertigem visionária que não carece de seguidor”. Pra logo em seguida dar a fórmula, com a canção que fizera para Bethânia, ‘Verdadeiro diamante’: “Onde quer que chegue, só por eu chegar / Como pessoa soberana nesse mundo / Eu vou fundo na existência / E para nossa convivência / Você também tem que saber se inventar.”
E era, claro, sempre o genial, o nosso Caetano. Entretanto, posto agora nesse terrível quando e como brasileiro, operou na gente um inevitável, como chamamos em literatura, efeito de sentido. E olha que ainda faltou Peter Gast, Não enche, Força estranha, It’s a long way, O quereres, London London, Vaca Profana, Oração ao tempo, Língua, Haiti… ah tanta coisa, que não caberia em mais dez lives.
Uma coisa que me chamou a atenção foi a grande estante ao fundo, repleta de signos que compõem no todo uma pessoal-memorabilia da cultura brasileira. Pesquei ali Jobim, Betânia, Oxóssi, mas a bandeira do Brasil sem o “lábaro que ostentas estrelado”, vazio, foi, pra mim, o logotipo da live.
Ao final, brinquei que eu queria a “beautifulcação” desse ser lindo Caetano Emanuel Viana Teles Veloso, exatamente por ter testemunhado o milagre que ele operou em todos nós, seus seguidores fiéis: voltar a ter alguma crença num país jogado no esgoto. How Beautiful could a being be!