Modelo do Carnaval soteropolitano está esgotado por Paulo Miugez
A crise do carnaval de Salvador é assunto que envolve especialistas,
carnavalescos e foliões. Está nas páginas dos jornais e nos bate-papos
em mesas de bares.
A crise do carnaval de Salvador é assunto que envolve especialistas,
carnavalescos e foliões. Está nas páginas dos jornais e nos bate-papos
em mesas de bares. O Bahia na Rede
entrevistou um dos maiores especialistas baianos no tema Carnaval: Paulo
Miguez, professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA
(IHAC/UFBA) e Coordenador do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação
em Cultura e Sociedade da UFBA (POSCULT/UFBA), que apresenta, a seguir,
idéias e questões incontornáveis para fazer avançar o debate sobre a
maior festa de rua do planeta.
Bahia na Rede: Muitos vêem um ressurgimento poderoso do
carnaval de rua do Rio de Janeiro. O carnaval de Recife é dito de alta
diversidade. Outros acreditam que há um esgotamento no carnaval de
Salvador. Você concorda com esta visão? Qual a análise que faz do
momento atual do carnaval de Salvador?
Paulo Miguez: Invenção, inovação, renovação são
marcas da festa carnavalesca. Do carnaval baiano e, também, dos outros
carnavais. Entre nós, por exemplo, os movimentos e momentos de renovação
não são poucos nem de pequena importância. É o caso de lembrar, por
exemplo, o surgimento do Trio Elétrico, em 1950, que desmonta a
hierarquia sócio-espacial dos festejos e funda nosso carnaval moderno;
ou a emergência dos Blocos Afro e o ressurgimento dos Afoxés, na metade
dos anos 1970, que promove uma radical reorganização sócio-política e
estético-artística do carnaval baiano, inclusive com implicações
profundas no tecido cultural da cidade, portanto, para além do carnaval
propriamente dito.
O que vem acontecendo com o carnaval carioca nos últimos anos deve
ser compreendido nesta mesma perspectiva: renovação. O surgimento de
centenas de blocos de rua no Rio de Janeiro é uma resposta renovadora ao
aprisionamento do carnaval carioca, nas últimas décadas, ao
exclusivismo da espetacularização midiático-turística das escolas de
samba. Belo, com certeza, mas apenas um espetáculo, e que, por ser
espetáculo, não consegue dar conta do espontâneo, do inusitado, do
extraordinário que caracterizam o "barato" carnavalesco.
Em Recife, a novidade da renovação parece ser no plano da intervenção
governamental na organização dos festejos. O modelo desenvolvido pela
prefeitura recifense, nos últimos anos, apostou na valorização da
diversidade de manifestações do carnaval, o que resultou no
revigoramento da festa – com efeitos positivos inclusive do ponto de
vista dos interesses da economia do turismo.
Quanto ao carnaval de Salvador, podemos, sim, dizer que há um
esgotamento. Esgotamento, entenda-se, do seu modelo de organização.
Modelo ancorado, exclusivamente, na lógica do negócio, de um negócio que
se caracteriza pelo caráter concentrador e excludente. É claro que o
carnaval é um momento privilegiado para negócios. E nada contra, em
princípio – até porque não consigo imaginar que uma festa com o tamanho
do carnaval baiano, e o mesmo vale para os carnavais carioca e
pernambucano, conseguisse escapar da lógica mercantil.
O problema é que temos um mercado absolutamente não-regulado,
capturado pelos grandes grupos da indústria do lazer, o que, do ponto de
vista econômico, inviabiliza a sustentabilidade dos pequenos negócios
oportunizados pela festa. Problema do ponto de vista econômico, problema
maior ainda no que diz respeito à dimensão cultural que é a essência do
carnaval, pois, por definição, um fenômeno cultural capturado
exclusivamente pelas práticas e dinâmicas de mercado vê sua diversidade
de manifestações empobrecida.
Bahia na Rede: Foram divulgadas pesquisas no período
carnavalesco de 2011 dando conta de alto percentual de soteropolitanos
que não participa do Carnaval. Foi sempre assim ou esse dado reflete
tendência contemporânea?
Paulo Miguez: Não temos como comparar períodos, pois
jamais tivemos pesquisas que se ocupassem em levantar estes números.
Desgraçadamente, a produção de estatísticas e indicadores do carnaval é
bastante recente – um importantíssimo trabalho iniciado pela gestão
anterior da Secretaria de Cultura do Estado, através da SEI, e que está
tendo continuidade na atual gestão.
O susto com os números publicados recentemente se deve ao fato de até
agora termos operado com números fantasiosos do tipo "2 milhões de
pessoas nas ruas", "1 milhão de turistas no carnaval", números que
atendiam à perspectiva do marketing turístico, interessado em vender o
carnaval baiano como sendo o maior do mundo, etc. etc. Mas a rigor,
concordemos, aproximadamente 600 mil residentes, entre foliões e
trabalhadores, e mais os turistas, totalizam um volume expressivo de
pessoas envolvidas com a festa e faz do carnaval baiano, efetivamente,
uma das maiores festas de rua do mundo.
Bahia na Rede: Os blocos afros, afoxés e outras
entidades carnavalescas lançaram recentemente um manifesto propondo um
novo modelo para o Carnaval de Salvador, tendo como eixo principal o
chamado "direito de arena", ou seja, eles querem ganhar parte dos lucros
obtidos pelos proprietários dos camarotes e emissoras de televisão.
Como você analisa esta pretensão?
Paulo Miguez: Não conheço o manifesto. Mas, do ponto
de vista da economia da festa, considero uma pretensão legítima. É mais
um empreendimento a engordar a carteira de negócios carnavalescos, tão
legítimo quanto qualquer dos empreendimentos que ano após ano o mercado
da festa costuma produzir. Volto a dizer que não li o manifesto. Mas, se
é a reivindicação do "direito de arena" o eixo que organiza o documento
não posso deixar de dizer que, ainda que a demanda seja legítima, a
perspectiva, para um manifesto que reclama uma reorganização da festa, é
equivocada.
A reorganização do carnaval não pode passar exclusivamente pela idéia
de um modelo centrado no(s) negócio(s), não pode imaginar que os
desafios do carnaval serão resolvidos apenas com a ampliação da carteira
de negócios e do número de negociantes. Se assim for, prevalecerão os
interesses dos grandes grupos que, com a força já acumulada, se
mobilizarão para derrotar a reivindicação do "direito de arena" ou, no
limite, saberão incorporá-la nas suas planilhas de custos, estas,
certamente, ainda com bastante folga face aos lucros produzidos por seus
múltiplos negócios.
Um manifesto pela reorganização do carnaval deve, claro, estar
atento, também, à renovação do modelo de negócio da festa. Mas deve,
fundamental e principalmente, cuidar da dimensão cultural da festa,
reivindicando as políticas públicas indispensáveis para garantir a
diversidade cultural do carnaval.
Bahia na Rede: Você acredita que o Conselho do
Carnaval é um organismo dotado das condições adequadas para gerir essa
gigantesca festa popular? Qual seria o modelo de gestão mais adequada
para a festa?
Paulo Miguez: Não. Absolutamente, não. O atual
Conselho do Carnaval, hegemonizado pelos grandes grupos empresariais que
controlam o mercado da festa, não passa de uma câmara organizadora dos
interesses corporativo-mercantis que atuam no carnaval. Atua única e
exclusivamente em favor destes grupos. Não tem qualquer preocupação com a
dimensão cultural da festa, com a diversidade de manifestações que
constrói a riqueza do carnaval. Qual a contribuição do Conselho, por
exemplo, para o resgate e preservação da memória carnavalesca? Que
projetos patrocinou na perspectiva da valorização da diversidade
cultural dos festejos? Qual o diálogo que tem estabelecido com a cidade
sobre os desafios contemporâneos do carnaval – neste particular, ao
contrário, a atitude do Conselho é a de recusa pura e simples de
participar de eventos dedicados à festa, como foi o caso dos Seminários
sobre o carnaval organizados pelo Conselho Estadual de Cultura em 2009.
Pior ainda é sabermos que o Conselho age desta forma com o
beneplácito ou omissão dos órgãos públicos municipais e estaduais que
dele participam. No Conselho, Prefeitura e Governo Estadual assistem,
calados, ao assalto ao patrimônio cultural baiano patrocinado pelo
Conselho. Fazem de conta de que o carnaval é assunto privado e que
interessa apenas aos que têm negócios na festa – e grandes negócios,
diga-se de passagem. Faz sentido, por exemplo, que nem a Fundação
Gregório de Mattos nem a Secretaria Estadual de Cultura participem do
Conselho, enquanto instituições que já nada representam, a exemplo da
Associação dos Cronistas Carnavalescos e da Federação dos Clubes Sociais
da Bahia nele continuem tendo direito a voz e voto?
Não tenho dúvidas que a existência de um Conselho do Carnaval é
fundamental a uma governança democrática e transparente do carnaval.
Mas, com certeza absoluta, não é o Conselho, no seu formato atual e com
suas práticas obscuras, que pode cumprir o papel de ator central da
organização do carnaval baiano.
Bahia na Rede: Quais outras medidas considera
necessárias para o fortalecimento do Carnaval do ponto de vista da
afirmação dos seus aspectos culturais e populares?
Paulo Miguez: Creio que a renovação do carnaval
baiano envolve, resumidamente, três importantes aspectos. A regulação do
mercado da festa, na perspectiva da sua desconcentração; a governança
da festa, no sentido da incorporação democrática e transparente dos
variados atores carnavalescos no processo de planejamento dos festejos;
e, muito especialmente, a formulação e implementação de políticas
públicas que compreendam o carnaval como um dos mais importantes
patrimônios culturais da nossa gente.
De todo modo, qualquer destes aspectos tem como imperativo
incontornável o papel ativo e responsável do Estado. Quando digo Estado,
estou me referindo particularmente à Prefeitura de Salvador,
responsável maior, por razões óbvias, pela festa, mas que tem
circunscrito seu papel ao de mero provedor dos serviços e
infra-estrutura necessários à realização do carnaval e à disputa por
patrocínios, eximindo-se completa e irresponsavelmente das suas
obrigações constitucionais de proteção e promoção, através de políticas
públicas de cultura, do patrimônio cultural da cidade.
Mas se a responsabilidade maior com o carnaval cabe à Administração
Municipal, também cabem ao Governo Estadual responsabilidades com a
festa. Parte destas responsabilidades tem sido atendida com competência
pela Secretaria Estadual de Cultura, tanto na gestão Márcio Meirelles
quanto, agora, com Albino Rubim. Programas como o Ouro Negro, por
exemplo, posto em marcha pela Secult, são fundamentais ao
desenvolvimento do carnaval pois deslocam a ação do plano do mercado
para o da cultura, do patrimônio cultural. Mas a Secult têm tido pouco
sucesso nas tentativas de articular os demais órgãos estaduais
envolvidos com carnaval na perspectiva de uma ação mais decididamente
voltada para a compreensão do carnaval como fato de cultura.
Bahia na Rede: Boa parte da sua vida acadêmica é dedicada ao estudo do Carnaval. Qual o foco das suas pesquisas atuais?
Paulo Miguez: Atualmente, tenho me dedicado a
estudar os carnavais latino-americanos e caribenhos, tanto do ponto de
vista da sua história e da dimensão simbólica que ocupam na cena
cultural de cada país como quanto às políticas públicas a eles
dedicadas, muito em especial no caso dos carnavais em que a presença de
práticas de mercado em larga escala já estão estabelecidas, como é o
caso do carnaval de Trinidad-Tobago. Neste sentido, pude desfrutar,
recentemente, entre janeiro e março deste ano, de uma bolsa de estudos
que me foi oferecida pela Biblioteca Latino-Americana da Universidade de
Tulane, em New Orleans, onde pude levantar vasto material para estas
pesquisas. Sabemos muito pouco, aqui no Brasil, sobre estes carnavais.
São, entretanto, sem qualquer dúvida, uma das maiores riquezas culturais
das Américas.
Artigo publicado originalmente em http://blogbahianarede.wordpress.com/2011/05/17/modelo-do-carnaval-soteropolitano-esta-esgotado/