Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

Moqueca que leva dendê. Por Jorge Papapá

2 minutos de leituraModo Leitura

Moqueca leva dendê — e leva também a alma de quem mexe a panela. É por isso que, quando o cheiro invade a casa, não é apenas comida que se anuncia: é um chamado antigo, quase um toque de atabaque pedindo licença para entrar no corpo e fazer memória dançar.

Dendê não é ingrediente; é lembrança líquida. Vai escorrendo devagar, acendendo a panela de um laranja quase sagrado, como se a Bahia inteira coubesse ali, borbulhando com calma, sem pressa, porque quem tem pressa não entende de moqueca. A verdadeira moqueca não aceita relógio — aceita axé, aceita mão firme, aceita silêncio de respeito.

O fogo lambe o fundo da panela e o cheiro sobe, serpenteando pelos cômodos, cutucando histórias guardadas. E cada história tem seu tempero: tem a avó que ensinou a mexer sem raspar o fundo, a tia que jurava que coentro era mais importante que o sal, o tio que chegava com peixe fresco e dizia “moqueca não é receita, é compromisso”.

E era.

Era compromisso com a mesa cheia, com a conversa solta, com o riso fácil. Era compromisso com a Bahia de todos nós — essa Bahia que cabe na panela, que canta dentro da cebola dourando, que dança dentro do leite de coco, que faz morada no dendê como se fosse casa de infância.

Na hora de servir, a moqueca faz silêncio. Um silêncio luminoso, daqueles que só a comida que vem de longe — da África, das marés, das mãos ancestrais — sabe impor. E no instante em que a primeira colher encontra o prato, algo acende no peito: uma alegria quente, um sabor que abraça.

Moqueca leva dendê, sim.

Mas leva também o que fomos, o que somos, e o que insistimos em ser: gente que celebra a vida com panela no fogo e coração aberto. Gente que sabe que cozinhar é rezar de outro jeito.

No final, quando o cheiro ainda paira no ar e a panela fica só com o restinho no fundo, a gente entende: a moqueca acaba, mas o dendê fica — na boca, na memória, na vontade de viver de novo aquele sabor que não passa.

Porque moqueca é isso:

um pequeno milagre diário.

E todo milagre, na Bahia, leva dendê.

Jorge Papapá é músico, poeta e escritor

Compartilhar:

Mais lidas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *