O 2º turno no Rio: a oficina de construção da frente ampla . Por Saul Leblon
Não há tempo para prostração. A disjuntiva histórica nunca foi tão clara: união do Brasil progressista ou a barbárie. O PDP emerge das urnas de 2016 como a grande força vitoriosa das eleições de 2 de outubro.
O Partido da Demonização da Política, a nova legenda, na verdade nem é tão nova assim. Mas recebeu investimentos maciços nos últimos anos para hipnotizar a maioria expressiva dos cidadãos brasileiros com o seu bordão: a política é o estorvo da sociedade.
A mensagem subliminar é ainda mais importante do que o rótulo ostensivo.
O que ela nos diz é que o espaço dos que nunca tiveram espaço nem voz na sociedade deve ser higienizado, fechado e lacrado.
Vedado aos ‘populistas’, esse recinto deve ser declarado uma sala VIP exclusiva dos ‘gestores’.
A extensão da lógica privada às demais esferas públicas – contas nacionais, empresas estatais, riquezas, serviços, direitos sociais, valores e princípios, como os das diretrizes da educação pública, por exemplo— está implícita.
A força da pregação regressiva, antes escudada no martelete dos donos da mídia e dos detentores da riqueza, ganhou uma alavanca legitimadora convincente com a judicialização da vida política e partidária nos últimos anos.
Um judiciário gilmarizado e o espaço concedido a ativistas sulforosos do Ministério Público e Cia, aglutinados em torno do juiz sensação nos EUA, fizeram o resto.
O conjunto logrou convencer parcelas majoritárias da população de que o problema do Brasil é a política. Mais precisamente seu braço ‘populista’.
A ofensiva não teria tido a eficácia que teve, porém, se não contasse com um ambiente favorável.
A obra regressiva coroada nas urnas deste domingo teve a colaboração não negligenciável dos erros cometidos pelas forças progressistas, sobretudo aquela majoritária desde 2003 no topo e na base da sociedade: o PT.
O mergulho incondicional na política parlamentar explica uma parte do espaço cedido ao arranque conservador.
Não apenas isso.
A adesão aos mecanismos convencionais de financiamento de campanha aleijou a perna esquerda do partido, que passou a negligenciar o papel do engajamento de seus eleitores e militantes, reduzidos a tela de fundo de campanhas publicitárias a cargo de rasputins marqueteiros.
Daí para a negligência com a luta das ideias, associada à omissão em quebrar o oligopólio da mídia, era um pulo ao abismo.
E ele foi dado.
A prioridade quase exclusiva à governabilidade baseada em trocas de cargos e favores, em detrimento da organização de base e da luta social, faria o trabalho restante de descarnar e desossar o metabolismo da sigla e o de sua militância.
A engrenagem autoalimentada cristalizou o distanciamento entre a rua e o topo, disseminando o sentimento de irrelevância em relação ao engajamento político.
No chão esburacado por gatos pardos o mantra da demonização do partido cuidou de escavar abismos profundos entre ele e a sociedade.
A percepção de que ainda assim, o saldo objetivo de realizações petistas cristalizara uma referência histórica no imaginário popular, levou às investidas destinadas a desmoralizar e degolar completamente seu aparato dirigente.
Esse tour de force se arrasta desde o julgamento do mensalão, iniciado em agosto de 2012, a partir de uma crispação de denúncias deflagradas em 2005, na tentativa de impedir a reeleição do então presidente Lula.
O julgamento do mensalão foi o teste bem sucedido de uma fórmula.
Ele se prolongou por 300 horas.
Todos os trabalhos foram televisionados ao vivo, replicados diuturnamente em manchetes e escaladas de rádio e telejornais, afinados como um único jogral.
Como se o jornalismo fosse uma extensão das togas.
E as togas uma forma de jornalismo.
O enredo da demonização da política e do PT se estendeu por 69 sessões do STF que avançaram até dezembro de 2012.
O rescaldo renderia farto material explorado até meados de 2014, na tentativa de minar a campanha pela reeleição da Presidenta Dilma.
Em 17 de março, então, essa cruzada receberia forte injeção de adrenalina.
Nesse dia irrompeu a primeira fase ostensiva da operação Lava Jato, devidamente vitaminada pela experiência do mensalão.
As cortinas do espetáculo foram abertas com poma e circunstância: 81 mandados de busca e apreensão, 18 mandados de prisão preventiva, 10 mandados de prisão temporária e 19 mandados de condução coercitiva, em 17 cidades de 6 estados e no Distrito Federal.
A Lava Jato já está em sua 35ª fase, com as guarnições de mídia e seletividade sabidas e aprimoradas.
E um calendário certeiro.
Em 26 de setembro, por exemplo, quase ao final da campanha municipal deste ano, foi decretada a prisão de Antonio Palocci.
Na semana anterior fora a vez do ex-ministro da Fazenda dos governos Lula e Dilma, Guido Mantega, detido por algumas horas gratuitamente, retirado de um hospital onde acompanhava a esposa, prestes a realizar uma cirurgia para tratamento de câncer.
Esse arrastão do discernimento social, capturado por uma sequência vertiginosa de ações cinematográficas de natureza judicial, policial e midiática, fica cada vez mais claro, obedece a um método e tem uma meta.
A espiral de rejeição e nojo da política que ele inoculava, deliberadamente condensada em uma sigla, agora pode ser medida em sua eficácia.
A comparação entre o total das abstenções, votos nulos e brancos nas eleições de domingo e o saldo computado nos últimos anos é eloquente.
Em 2010, 34 milhões de brasileiros e brasileiras ficaram de fora da escolha das urnas: não votaram, anularam ou deixaram sua cédula em branco.
Em 2014 esse total já saltaria para 40 milhões.
Nas eleições municipais deste ano o percentual médio de abstenção pulou de 16,4% para 17,6% , mais de 25 milhões deixaram de comparecer às urnas. E dos mais de 118 milhões de eleitores brasileiros que compareceram, o total de votos em branco e nulos chegou a 13,68% — 23% maior na comparação com os 11,15% registrados no primeiro turno de 2012
O quadro em centros urbanos importantes é ainda mais categórico.
Em São Paulo, a soma de abstenções, brancos e nulos (3.096.574) superou a votação obtida pela candidatura vitoriosa de Dória Jr (3.085.187).
Nada menos que 35% dos eleitores paulistanos se recusaram a participar da decisão sobre o futuro da cidade.
Quase quatro em cada dez.
Cerca de dois milhões se abstiveram (quase 22%, contra média nacional de 17,6%); um milhão e 100 mil anularam ou deixaram a cédula eletrônica em branco.
Porém, mais que isso.
O tucano vitorioso, durante 35 dias de campanha com o maior tempo no horário eleitoral, insuflou o mesmo martelete, engrossando o caldo de cultura da demonização petista e da antipolítica.
Dizendo-se um ‘gestor’, um homem da iniciativa privada, um self made man, fez de sua candidatura uma bazuca de menosprezo às bases da democracia e da participação popular.
Deu certo.
Um dado resume todos os demais: o Partido Popular (PP), com mais nomes que o PT implicados nas investigações da Lava Jato sobre a Petrobras, fez 493 prefeitos no Brasil, tornando o 4º maior partido nesse ranking
O PT fez 256, na 10ª posição.
A vitória esmagadora do conservadorismo cobrará sua fatura em todas as esferas progressistas da sociedade, assim como as vitórias anteriores do PT abriram espaços de descongelamento social e político no país.
Extrair lições da borrasca é condição de sobrevivência.
Requer humildade, mas também desassombro.
Em primeiro lugar, para contemplar os ares de um mundo no qual a agenda neoliberal vitoriosa no país estrebucha de forma irremediável.
Ou seja, não há uma porta de saída conservadora para curar as feridas do PT. Ao contrário.
Marta Suplicy é o cadáver político dessa aventura desastrada.
A realidade deve ser apreendida em toda a sua extensão: vivemos uma mudança de época. Um ciclo de desenvolvimento se esgotou no país; outro terá que ser construído em meio a um ambiente de estagnação secular do capitalismo internacional.
A disjuntiva histórica talvez nunca tenha sido tão clara.
Mais igualdade com maior repartição de esforços, ou a barbárie social.
Essa materializada na agenda de um golpe que se propõe a esfolar o país com sucessivos ajustes fadados ao fracasso, empurrando a sociedade num plano inclinado de conflitos graves e recessões agudas.
A repactuação do desenvolvimento, com uma agenda negociada de metas e prazos para emprego, salários, inflação, juros, déficit fiscal etc é a alternativa à aventura delirante dos ‘gestores’ que pretendem transpor para sociedades extremadas, fundadas na contraposição estrutural de interesses, a mitologia do self made man.
O aumento psicopata da velocidade nas marginais de São Paulo, anunciado por Dória Jr, é a síntese dessa regressão à luta de todos contra todos fadada ao fracasso, com um custo alto para a população.
O que se tem pela frente, porém, é pior que um acidente de trânsito.
Uma esmagadora engrenagem se move para tomar de volta tudo aquilo que transgrediu os limites da democracia formal, e que o ciclo iniciado em 2003, com as limitações sabidas, transformou em um resgate social inconcluso, todavia encorajador.
Vem aí um paradigma de eficiência feito de desigualdade ascendente, incompatível com a Constituição Cidadã de 1988, que será violada para devolver o Brasil ao figurino pré- redemocratização.
Quem pode liderar uma repactuação de desenvolvimento, capaz de evitar esse capotamento histórico, num quadro internacional do qual não se pode esperar um socorro redentor?
A tarefa que já não era só do PT, agora responsabiliza com maior clareza ainda o conjunto das forças progressistas e democráticas.
O principal desafio hoje no Brasil é reconquistar a confiança da sociedade na ação política, o que implica subordinar o mercado às decisões da democracia.
Se antes esse debate se esgotava na circularidade da inércia e do sectarismo, hoje ele ganhou a nitidez da atmosfera depois das grandes tempestades.
O relógio da história brasileira soou o sinal de alarme.
Quem é democrata, liberal sincero, nacionalista, progressista, socialista ou comunista não pode fingir que não vê ou perguntar que horas são.
Passa da hora de o campo progressista superar sectarismos e prioridades corporativas para enxergar além da lógica particular de cada projeto.
O nome desse discernimento é Frente Ampla.
Não de cúpula.
Não de parlamento.
Mas à moda uruguaia.
Aquela que reúne partidos, centrais sindicais, juventude, movimentos sociais, personalidades, intelectuais, juristas, artistas, enfim, brasileiros e brasileiras de todos os matizes progressistas e democráticos.
Não é opcional.
Sem um escudo dessa densidade será quase impossível resistir ao vagalhão conservador.
A ausência desses requisitos explica uma parte significativa do resultado eleitoral deste domingo, marcado por diferentes versões de descrença na ação política convencional e, sobretudo, em propostas progressistas desprovidas de uma articulação política capaz de torna-las críveis.
A construção de uma frente ampla que sacuda o ceticismo e afronte a espiral conservadora não é tarefa para o divã político.
É uma obra da urgência. E do desassombro.
Pode e deve ser construída nas oficinas da história, onde práticas e concepções que contribuíram para o desfecho desastroso de agora sejam revistas e modificadas.
Hoje, sem dúvida, o segundo turno da disputa pela prefeitura do Rio de Janeiro é uma dessas oficinas privilegiadas da história.
Qualquer coisa menos do que isso seria não apenas desperdiçar uma oportunidade, mas uma forma de eutanásia histórica.
Municipalizar a campanha do Rio, tratar dos assuntos da cidade, não significa apequenar ou abastardar essa responsabilidade.
O localismo é tudo o que o golpe quer, tudo o que a Globo quer.
A única chance de vitória de Marcelo Freixo é remar em sentido oposto.
Fazer do Rio uma caixa de ressonância do país, das demandas do país, das soluções que o país dispõe para não se reduzir a um caso de mexicanização desoladora.
Para isso é preciso reunir todas as grandes lideranças nacionais, todas as forças democráticas do país, inclusive os liberais sinceros, em defesa do desenvolvimento, da democracia e da cidadania, condensados num programa para a cidade do Rio de Janeiro.
Em defesa do emprego, do pre-sal, da mobilidade, da escola, da saúde e dos investimentos.
Foi o que Brizola fez na audaciosa campanha para governador em 1983.
Vitoriosa, contra a vontade da poderosa família Marinho e num ambiente político ainda marcado pela ditadura.
Tratar da agenda municipal no 2º turno do Rio não implica apequenar, mas cometer a ousadia de ligar os motores da oficina história para produzir o que ela cobra hoje.
A construção de uma frente ampla à moda Mujica, reunindo o melhor do Brasil pelo Rio
Menos que isso seria mentir ao eleitor que a sua vida pode ficar melhor sem direitos, sem emprego e sem maior participação democrática.
Ademais de eleger Freixo, trata-se de sinalizar o credenciamento de uma agenda que tem outra proposta para o conflito redistributivo agudizado pela encruzilhada do desenvolvimento nacional.
Significa reverter a lavagem cerebral conservadora e dar ao jogo o seu verdadeiro nome.
A centralidade do conflito hoje no Brasil não é ‘eficiência privada’ ou caos, mas democracia social negociada versus arrocho conservador.
O divisor de águas consiste em devolver ao debate eleitoral uma dimensão crucial do desenvolvimento esmaecida nos últimos anos: a sua determinação política.
O reencontro do país com um novo ciclo de investimento e distribuição de riqueza é indissociável de um avanço da democracia, que passa pela repactuação da economia com a sociedade.
O resto é ilusão, arrocho e repressão.
Artigo publicado originalmente em http://cartamaior.com.br/?/Editorial/O-2º-turno-no-Rio-a-oficina-de-construcao-da-frente-ampla-/36937