Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

O Bogart de Igarapé. Por José Ribamar Bessa Freire

5 - 7 minutos de leituraModo Leitura
Jose_Ribarmar_Bessa

Era uma tarde de agosto, no início da década de 60. Fazia um calor infernal. Decidi, então, trocar uma aula de ciências do professor Afonso Nina, no Colégio Estadual do Amazonas, por um filme que mudaria o rumo da minha vida, definiria minha profissão e, agora, me permite estar aqui batendo um papo contigo.

Não lembro se o cinema era o Polytheama ou o Guarany. Não recordo mais o enredo nem o título do filme, o que aliás não tem a menor importância. Só não consigo esquecer o personagem principal – um jornalista – vivido na tela por Humphrey Bogart.

Charmoso, refinado, vestindo seu inseparável casaco com a gola virada pra cima, fingindo desleixo, o jornalista Bogart viajava de Paris a Nova Iorque e daí a Pequim com a mesma facilidade de quem vai da Praça da Saudade ao Teatro Amazonas. Hospedagem: só em suíte de hotéis luxuosos. Comidas: sempre em restaurantes chiques com vinhos franceses. Sala de redação: no deque de uma piscina, onde ele batucava, intrépido, na máquina de escrever portátil e afogava-se em cascatas de uísque escocês. Em cada cidade que chegava, papava mulheres gostosas, cheirosas e sensuais.
É isso que eu quero prá mim. Vou ser jornalista – pensei, ansioso, ao atravessar a rua, muito suado, desviando das poças de lama, em direção à banca de tacacá da nega Vitória, onde encontrei o Inezildo Bate-Papo, lá da Xavier de Mendonça. Lembro muito bem, porque ele me chamou de cunhado e me pagou dois croquetes, enquanto cantarolava, com voz trêmula e anasalada, um sucesso de Anísio Silva, tocado insistentemente nas rádios:
Alguém me disse, que tu andas novamente, de novo amor, nova paixão, toda contente.
A minha nova paixão era, evidentemente, o jornalismo. A do Inezildo era, naturalmente, minha irmã: a Teca. Ambas, naquele momento, pareciam um sonho inatingível.
Um mês depois, o sonho – o meu, o do Inezildo não – começou a virar realidade. Foi quando vi, pela primeira vez, em carne e osso, um jornalista de um grande centro. Não era mais uma ilusão cinematográfica. Era de verdade. Acabava de chegar direto do Rio de Janeiro, onde trabalhara como repórter esportivo da Asapress, o amazonense Jefferson de Souza. Ele voltou a Manaus com o chiado do sotaque carioca, o que fez de sua estréia na Rádio Rio-Mar, uma fechsta echspetacular do echsporte baré, registrada inclusive pela coluna social do Nogar – Tudo vê, Tudo informa.
Vi o Jefferson, a menos de um metro de distância, no arraial de Aparecida, que acontecia todo mês de setembro. Como locutor, ele anunciava os telegramas no ar e os comerciais do “Serviço de Amplificação A Voz Quermesse de Aparecida”. As meninas suspiravam ao ouvi-lo: “Vai casar? O seu problema é móvel? Procure o Mundo dosch Móveissch, de Antônio M. Henriquessch”. A presença dele, ali, surpreendia tanto quanto se hoje Romário viesse morar em Manaus para jogar no São Raimundo.
Numa época em que os playboys do bairro andavam de alpercata de arigó feita de pneu usado, vendida no Mercadão, Jefferson de Souza, o popular Bibi, foi o primeiro amazonense a colocar nos pés uma sandália japonesa, leve, colorida, confortável, trazida do Rio de Janeiro. Em Manaus, era impossível encontrar a novidade, nem na Sapataria Onça, que vendia “os melhores calçados do Brasiiiiil”, nem na Casa Tem-Tem, que a Rádio Difusora jurava que era “a casa do pobre e do rico também”.
O bairro todo olhava, fascinado, magnetizado, os pés do Bibi. Com sandálias japonesas amarelas, óculos escuros de lentes rayban, camisa volta-ao-mundo e calça de nycron foi que o Bibi, todo pintoso, fez sua estreia no arraial de Aparecida. Numa das barracas, tentou a sorte: comprou argolas e conseguiu acertar num maço amarelinho de cigarro Astória, combinando com a cor da sandália. Era a suprema glória.
O Bibi não frequentava cassinos internacionais, como o Bogart, (no máximo arriscava uma fezinha no jogo do bicho), mas tinha lá o seu glamour. Quando se deslocava, no arraial, parecia um paxá, com um séquito de mulheres atrás dele, entre elas as paraibanas, as fificas fogaças, as saubinhas e até mesmo – eu confesso – minhas próprias irmãs, todas elas querendo namorar com ele. Não era, digamos assim, um plantel de Ava Gardner e Marylin Monroe, mas o Bibi também não era o Bogart. Enfim, era o que se tinha de mais sofisticado para o consumo local.
Entenda-se bem, a escolha não era Bibi ou Bogart, mas Bibi ou Inezildo. Vem cá, maninha, me diz, sinceramente, quem olharia para um cara chamado Inezildo e apelidado Bate-Papo? Ninguém. Nem a Teca. O Inezildo, de profissão rádio-eletricista, nunca tinha viajado sequer a Manacapuru. O mulherio estava mesmo vidrado era no Jefferson (com dois efes como o presidente americano), exatamente porque era um jornalista vindo do Rio de Janeiro.
Aí, não tive mais dúvidas. Decidi estudar jornalismo no Rio, deixando o meu Cariri no primeiro pau-de-arara que apareceu: o conhecido voo-da-fome, no  constelation da Panair, que durou  nove horas, com a aeromoça servindo, apenas uma vez, pão-doce com xarope de guaraná. Passageiros previdentes levavam galinha assada e farofa, como num piquenique.
Na despedida, no aeroporto da Ponta Pelada, lembrei-me de Bogart no filme Casablanca. Então, da escadinha do avião, arrisquei um último olhar a Manaus: minha tia Helena, de longe, esfregava freneticamente o indicador no polegar, apontava para os pés e girava os cinco dedos. Tradução: bota o dinheiro dentro do sapato, que no Rio há muito ladrão. Era uma mixaria, uns centavos poupados com sacrifício de mãe viúva. Por essa, o Bogart não passou.
Se naquela tarde de agosto dos anos 60 tivesse chovido, eu teria assistido a aula do Nina e hoje – quem sabe? – seria um químico, um farmacêutico, um merdólogo especializado em amebas, giárdias ou outros protozoários. Devo a uma aula gazetada, ao Bogart, ao Bibi e ao Orígenes Martins – que me deu de presente a passagem de avião – a escolha de uma profissão, que permite ficarmos juntos hoje, leitor (a). Agradece a eles, se achas que o papo merece.
O Bogart morreu, mas continua encantando o mundo com seus filmes. O Nina aposentou-se. O Bibi desencalhou umas das minhas irmãs, com quem é casado até hoje. O Orígenes, dono do CIESA, virou empresário respeitado. Quanto a mim, o que efetivamente ganhei com o jornalismo? Mais de trinta anos depois de pegar um ita no norte e ir pro Rio morar, cadê as viagens, as bebidas finas, os restaurantes sofisticados, os hotéis de luxo e, sobretudo, as mulheres exuberantes e perfumadas? Cadê? Ninguém me falou que a poupança dentro do sapato acabaria logo e que, no longo caminho de aprendizagem, eu encontraria porrada, prisão e exílio.
José Ribamar Bessa Freire, professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de doutorado e mestrado e da Faculdade de Educação da UERJ, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indigenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti. Tem mestrado em Paris e doutorado no Rio de Janeiro. É colunista do novo Direto da Redação.

Artigo publicado originalmente em http://www.correiodobrasil.com.br/o-bogart-de-igarape-2/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=b20151208

Compartilhar:

Mais lidas