Aldeia Nagô
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O Brasil Real, Por Cláudio Oliveira

7 - 10 minutos de leituraModo Leitura
Claudio_Oliveira

Acordamos hoje mais próximos do Brasil real. É importante sermos orientados pelo real.  Agora conhecemos todos, um por um, a classe política que nos representa. Não adianta dizer “não me representa”. Se não te representasse, o impeachment não tinha sido aprovado. O sistema é representacional.

Então, representa sim. Esse congresso te representa. Mas do que isso: representa o nosso país. É preciso acordarmos para o real. Esse congresso nos representa mais do que qualquer outro até hoje. Talvez nenhum congresso tenha representado mais o Brasil do que o atual.

É o pior de todos? Pois esse pior é o Brasil. É preciso aceitá-lo. Entender que este é o Brasil real é também fundamental para darmo-nos conta de nossas ilusões. A primeira de todas: aquela que nasceu em nós desde a primeira eleição do Lula.

A ilusão de que o Brasil tinha mudado ou que estava mudando ou que tinha começado a mudar. Gostaria de deixar bem claro que não acho que a ilusão (A Grande Ilusão) tenha sido o PT. Ao contrário de muitos de meus colegas que se dizem decepcionados com o PT, eu diria o contrário: eu me sinto decepcionado com o Brasil, com a sociedade brasileira. O que foi falso não foi a promessa petista de mudar o Brasil. O que foi falso foi a promessa da sociedade brasileira de que ela mudaria.

O que foi falso foi acreditar que ao votar no PT a sociedade brasileira estava realmente se propondo a mudanças estruturais em si mesma. O PT não foi capaz de fazer essas mudanças? Ora, quem pode mudar uma sociedade que não quer mudar a si mesma? O PT jamais governou com maioria parlamentar. O PT sempre governou com o Brasil real, o pior. E tentou fazer o que fez mesmo com esse Brasil real.

Mesmo com esses partidos que são os verdadeiros donos do Brasil. O PT estava no poder, mas não estava, nunca esteve. Nunca teve condições de implantar, no campo da lei, qualquer mudança, pois para mudar a lei é preciso ter maioria no Congresso, algo que o PT nunca teve, que a esquerda nunca teve. O PT mudou o executivo, em alguns aspectos, mas o executivo não é a lei. O executivo é o governo.

E, mesmo no executivo, o PT não teve o controle de tudo. Teve sempre, desde o início, que compartilhar o próprio governo com o Brasil real. Porque o Brasil real nunca deixou de existir e de ter o poder. Portanto, a ideia de que a eleição de Lula mudou algo no seio, no coração da sociedade brasileira é uma ilusão. Afinal, algo mudou? Sim, dessa vez, não tivemos um golpe militar. Sem dúvida. Talvez isso tenha de fato mudado. Mas talvez não tanto porque isso não seja mais aceitável.
Talvez apenas porque não é mais necessário. Não foi necessário um golpe militar, mesmo que uma parte da população (como muitos de nós sempre souberam) tivesse uma nostalgia considerável daqueles anos de chumbo. O golpe dessa vez foi um golpe sem militares, como mostrou o mais brilhante cartoon de Laerte, que mostrava alguém andando em uma bicicleta chamada golpe com as mãos no ar dizendo: “olha mãe, sem militares”.

Mas apesar da ausência dos militares, que não quiseram dessa vez entrar na festa (não foram convidados para essa festa pobre), os outros elementos estavam todos lá. A imprensa, acima de tudo, o judiciário, o ministério público, a polícia federal. As famílias, a Fiesp, etc. Os mesmos de sempre. Esse é o Brasil real. E é o real pelo simples motivo de que o real é o que volta sempre no mesmo lugar, segundo o célebre ensinamento de Lacan.

Ora, esse mesmo é sempre a esperança de uma diferença. A questão que devemos nos colocar é: o que 13 anos de um governo de coalização liderado pelo PT mudou no Brasil real? Sem dúvida, houve diminuição da miséria, da fome, da mortalidade infantil, do analfabetismo. Sem dúvida, mais jovens tiveram acesso às universidades federais e a escolas técnicas federais. Sobretudo mais jovens negros. Toda a questão é que tudo isso pode cair de um dia para o outro. Nós já sabemos que vai cair. A ideia de Lula de que só era possível haver mudanças se não houvesse confrontação é paradoxal. Mas é o paradoxo constituinte do próprio Brasil.
Um paradoxo que ele sempre entendeu, melhor do que ninguém. É como se o que estivesse à espreita fosse sempre o pior, o Brasil real. A ideia de que a sociedade brasileira, a real, aceitaria as mudanças desde que ela não perdesse é terrível e, num certo sentido, podemos dizer, Lula estava certo. Eles aceitavam a sua vitória desde que tudo continuasse como estava. Quando a economia deu os primeiros sinais de enfraquecimento, o Brasil real veio como um rolo compressor destruindo tudo. Não há Lei em nossas terras, todos nós sabemos disso. Nem precisa ser pobre, preto e morar na favela para saber disso. A ausência da Lei é um efeito histórico. Quem comanda o país são as famílias. Aquelas mesmas que foram citadas pelos deputados que votaram sim na noite de ontem na Câmara dos Deputados. As suas famílias. Família em grego é oikía.

É dessa palavra que se formou já no mundo grego o termo oikonomia. Os nossos deputados, como provavelmente também os da maioria dos outros países, votam de acordo com interesses oikonômicos, isto é, familiares. Enquanto famílias governarem o Brasil (e o mundo), não há Lei, nem haverá. Mas apenas abuso. A família, como todos sabem, é o espaço por excelência do abuso. Não só no interior delas, mas também entre elas. É muito difícil a lei penetrar no campo da família, o que quer dizer também que é muito difícil a lei penetrar no campo econômico.

Daí a ideia de uma regulamentação econômica dos meios de comunicação de nosso país gerar uma espécie de pânico mal dissimulado entre todos os que habitam o Brasil real. Então o que fica como saldo? O que fica como saldo é o real, o encontro com o real. As figuras obscenas da noite de ontem são a prova dessa proximidade com o real.

E o pior que nós podemos fazer em face do real é negá-lo, denegá-lo. O real é também nossa única esperança porque não há mudança consistente se ela não atinge o real. Nós devemos nos guiar pelo real, para não nos iludirmos. Aqueles que se dizem desiludidos com o PT se iludiram porque nunca levaram em consideração o real. E agora que nós sabemos onde ele está, esse real, é importante que nós não o esqueçamos, que nós não mais nos iludamos. O Brasil real é esse, o pior.

A opção que nós tínhamos antes era: ou o PT ou o pior. Pois bem, não quisemos mais o PT. Agora teremos o pior. Mas o pior às vezes não é tão ruim. Ele pode ser salvador. Eu acho que há muitas pessoas que estavam precisando do pior para se reordenarem de novo.

O pior é fundamental. E é só a partir dele que algo melhor pode vir a ser construído. O mensalão foi a primeira tentativa de destituição desse governo de esquerda que nós tivemos, mas não existiam condições econômicas, familiares, para que o golpe tivesse sido dado naquele momento. As famílias estavam ganhando muito dinheiro naquele momento para destituírem um governo por motivos ideológicos (tanto as famílias pobres quanto as famílias ricas). (Ah, você é um intelectual de esquerda que acreditou no mensalão? Ah, me poupe.

Sugiro que você leia alta literatura infantil, tipo Pinóquio. Vai te fazer bem.) A operação lava jato entendeu que o momento era agora. As famílias estavam loucas, perdendo muito dinheiro (tanto as famílias pobres quanto as famílias ricas). O salvador estava pronto: um juiz caipira da província que veio para limpar o Brasil dessa sujeira (velha novela, mas que sempre dá a maior audiência.

Você também acreditou na lava jato? Desista, nem o Pinóquio pode te salvar!) O Brasil real é não aquele que a Folha, o Estadão, o Globo, A Veja, a Isto é mostram, o Brasil real é o fato de que ele passe a ser aquilo que esses meios de comunicação mostram. O Brasil real é o fato de que essas famílias dominem esses meios de comunicação.

O Brasil real é o fato de que a sociedade brasileira acredita nesses meios. O Brasil real é o Eduardo Cunha presidindo a Câmara dos Deputados, em acordo com as maiores empresas do país que o financiam e financiam todos os deputados indicados por ele.

O Brasil real é o Michel Temer conspirando para tomar o poder, é a existência de um partido como o PMDB, sem o qual nenhum outro partido pode pensar em governar esse país. O Brasil real é o Sergio Moro invadindo a casa do Lula sem nenhum tipo de justificativa legal, para um condução coercitiva, do mesmo modo que a polícia entra e mata nas favelas.

A ilusão (A Grande Ilusão) foi o Lula achar que por ter sido duas vezes presidente do Brasil deixaria de ser tratado depois como um simples nordestino metalúgico sindicalista. Assim como a grande ilusão é achar que porque estão indo às universidades os jovens negros das periferias serão tratados de modo diferente a partir disso.

Não vão. Muito pelo contrário, será tratados com mais violência ainda, porque para o Brasil real, pior do que ser preto e pobre é ser preto e pobre e não saber o seu devido lugar. Para o Brasil real, nada disso tem a menor importância. Você pode ter sido Presidente do Brasil, pode ter feito medicina na USP e o caralho a quarto.

Se você for nordestino, se você for preto, se você for petista, você será sempre tratado como um merda. E qualquer juizinho vai te tratar como um merda. Porque é assim que o Brasil real trata as pessoas que não pertencem às famílias.

Não se iluda. O Brasil real é esse a que você assistiu pela tevê ontem. E vai continuar assistindo. Não encarar esse real não vai te ajudar em nada. Ao contrário. Temos que encarar o real. A partir de agora, eu acho que só uma coisa pode salvar o Brasil: o Pior. (levemente inspirando no Seminário XIX de Lacan, que tem por título “… ou pior”.)

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