Aldeia Nagô
Facebook Facebook Instagram WhatsApp

O espernear do ocidente. Por José Sócrates

3 - 4 minutos de leituraModo Leitura
Jose-Socrates

Artigo publicado originalmente no iclnoticias

Nos últimos 40 anos, o centro de gravidade da economia mundial deslocou-se do ocidente para o oriente

O “tarifaço”, como aí lhe chamam, atira o Brasil para uma situação sem alternativa: o que está em causa não é nada que se possa negociar. As tarifas não têm razão econômica, mas de soberania: pode o Brasil vender a sua política criminal? Pode o Brasil negociar com outro país a sua política de justiça? Não me parece. No dia em que o fizer, no dia em que aceitar fazer compromissos internacionais com a sua justiça doméstica, o Brasil perde o respeito por si próprio. Não, não há espaço para negociar — ao Brasil só resta a dignidade. A atitude americana é tao ultrajante que não deixa alternativa.

Dizem que há duas direitas. Não sei. O que vejo é uma direita submissa e outra que tenta disfarçar a submissão. Uma obedece ao império; a outra apela a uma negociação — desde que não lhe perguntem o que negociar exatamente. Sinceramente, este é um daqueles momentos que não admite meios termos: o dever da oposição é colocar-se ao lado do governo na defesa do interesse nacional. Afinal, se nem nestes momentos o País se une para combater uma tal afronta à honra nacional, vai fazê-lo quando?

Este caso tem potencial para se tornar o principal assunto da próxima campanha eleitoral. A direita deu um tiro nos pés, estou de acordo. O tema terá desenvolvimentos interessantes na política brasileira (a não ser que tudo isto não passe de mais uma fanfarronice, coisa que não podemos descartar). Há, todavia, um outro ângulo de análise que tem a ver com o lado americano — afinal, qual é o significado de tudo isto para a ordem mundial? A resposta é simples: as tarifas representam o espernear do ocidente.

Nos últimos quarenta anos, o centro de gravidade econômico do mundo deslocou-se do ocidente para o oriente. A China venceu a batalha econômica da globalização. Essa alteração econômica foi tão poderosa e significativa que trará consigo, inevitavelmente, uma alteração nas relações de poder entre as nações. Dir-me-ão que já houve, no passado, mudanças econômicas assim entre o oriente e o ocidente, e eu responderei que sim — mas nunca em tão curto espaço de tempo.

Quando o Presidente Trump despreza as normas internacionais de negociação comercial e adota uma política de ameaças tarifárias contra todo o mundo, incluindo os países aliados e amigos, o que está a fazer é mostrar a fraqueza da atual liderança americana e a crise da ordem ocidental.

Bem sei que do ponto de vista brasileiro este é um caso sério para a sua economia e um desafio ainda mais sério à sua soberania. Mas, por favor, não percam de vista o quadro geral. Visto do lado americano, ou melhor, do lado ocidental que os Estados Unidos lideram nos últimos oitenta anos e que construiu as regras e instituições que orientaram o Mundo, este caso nada tem a ver com justiça, nem com firmeza — tudo isto tresanda a fim de regime.

No fundo, é isto que a nova onda de extrema direita tem para oferecer como nova ordem ocidental — uma promessa de caos e de ameaças. Agora, no mundo de hoje, só a força e a violência contam. Enfim, o que quero dizer é isto: o tarifaço é tao repulsivo e tão desmiolado que só pode ser entendido como representando o espernear da antiga ordem ocidental.

José Sócrates

Primeiro-ministro de Portugal, de 2005 até 2011

Compartilhar:

Mais lidas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *