O juiz que se recusa a ceder à vontade de Trump:’Faremos o que é certo’. Por Terrence McCoye e Marina Dias
Artigo publicado originalmente no Washington Post
O juiz se permitiu um momento de relaxamento. Seu amado time de futebol, o Corinthians, estava jogando na televisão. O jogo não foi particularmente bom, disse ele, mas foi uma distração útil — das sanções americanas contra ele, das provocações de Elon Musk e das tarifas americanas impostas ao Brasil pelo presidente Donald Trump em resposta direta ao seu trabalho.
O breve devaneio do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, não durou muito. Seu celular começou a receber mensagens.
Jair Bolsonaro, ex-presidente brasileiro que aguarda julgamento no próximo mês sob a acusação de liderar um violento plano de golpe, parece ter desobedecido a uma ordem de Moraes que o proibia de acessar as redes sociais. O juiz agiu imediatamente, ordenando unilateralmente que o político conservador mais popular do país fosse colocado em prisão domiciliar.
“O tribunal não permitirá que o réu faça papel de bobo”, escreveu Moraes em sua decisão de 4 de agosto.
O episódio, relatado pelo juiz em entrevista exclusiva ao The Washington Post, foi emblemático das regras de conduta de Moraes, que nortearam sua carreira marcada por batalhas de alto risco com políticos e empresários poderosos: Nunca ceder. Sempre escalar.
Como jovem promotor, ele enfrentou a prefeitura de São Paulo em uma ampla investigação de corrupção. Como ministro do Supremo Tribunal Federal, ele entrou em choque com Bolsonaro, Musk e outros luminares da direita global. Agora, seu oponente é ninguém menos que o presidente dos Estados Unidos.
Descrevendo a acusação de Moraes contra Bolsonaro como uma “caça às bruxas” e sua campanha contra a desinformação online como um ataque à liberdade de expressão, Trump voltou toda a força do poder econômico e diplomático dos Estados Unidos contra o Brasil. Ele impôs uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros. Seu governo revogou o visto americano de Moraes. No final do mês passado, o Departamento do Tesouro tomou a medida extraordinária de sancioná-lo com base na Lei Magnitsky, tradicionalmente usada contra acusados de violações “graves” dos direitos humanos.
O juiz não se deixou intimidar.
“Não há a menor possibilidade de recuar um milímetro sequer”, disse Moraes ao The Post em uma rara entrevista de uma hora em seu gabinete neste mês. “Faremos o que é certo: receberemos a acusação, analisaremos as provas, e quem deve ser condenado será condenado, e quem deve ser absolvido será absolvido.”
Autorizado pelo Supremo Tribunal Federal a investigar ameaças digitais, verbais e físicas contra a ordem democrática brasileira, Moraes tornou-se uma autoridade nacional por si só, além de uma figura única no mundo: um xerife da democracia. Seus decretos expansivos repercutiram em todo o mundo, em sociedades cada vez mais polarizadas por debates sobre liberdade de expressão, tecnologia e o poder do Estado.
Ele suspendeu plataformas de mídia social — principalmente a X —, o que levou Musk a apelidá-lo de “Darth Vader do Brasil”. Ele ordenou a prisão de atuais e ex-governadores e destituiu unilateralmente o governador de Brasília depois que milhares de apoiadores de Bolsonaro invadiram a capital em 2023. E agora, ao colocar o ex-presidente em prisão domiciliar e bloqueá-lo das redes sociais, ele efetivamente silenciou uma das figuras de direita mais reconhecidas do mundo.
Para entender como Moraes ascendeu de uma família de classe média comum para se tornar o jurista mais poderoso da história brasileira, e para obter pistas sobre onde seus processos podem levar a maior democracia da América Latina, o The Post entrevistou 12 amigos e colegas antigos e atuais de Moraes, muitos dos quais falaram sob condição de anonimato para discutir assuntos delicados.
A maioria defendeu Moraes, afirmando que suas medidas linha-dura ajudaram a preservar a democracia brasileira em um momento de ascensão do autoritarismo em todo o mundo. Mas outros disseram que ele se tornou poderoso demais e que era culpado de excessos, colocando em risco a legitimidade da mais alta corte do país.
“Estou triste com a deterioração da instituição”, disse Marco Aurélio Mello, que se aposentou do Supremo Tribunal Federal em 2021, após 31 anos. “A história é implacável”, continuou. “Ela acerta as contas depois.”
Tomando café em seus aposentos repletos de livros, Moraes discordou. O Brasil havia sido infectado pela “doença” da autocracia, disse ele. E era sua função aplicar a “vacina”.
“Não há como recuarmos naquilo que precisamos fazer”, disse ele. “Digo isso com total tranquilidade.”
‘Um momento extraordinário’
No início de 2019, Dias Toffoli, então presidente do Supremo Tribunal Federal, telefonou para Moraes, o membro mais jovem de sua corte, com um pedido urgente. Havia um problema, disse Toffoli a Moraes, e ele poderia ser o único a resolvê-lo, segundo pessoas familiarizadas com a conversa.
As instituições brasileiras, já pressionadas por sucessivas investigações de corrupção e escândalos políticos, estavam se preparando para a rápida ascensão política de Jair Bolsonaro, um apologista descarado da antiga ditadura militar do país. Sua campanha havia consolidado uma parcela da população antes marginalizada , favorável ao retorno do regime militar . Seu filho Eduardo — um de seus representantes mais destacados — havia criticado o Supremo Tribunal Federal (STF), afirmando que ele poderia ser fechado com dois soldados.
“Afinal, o que é o Supremo Tribunal Federal?”, perguntou Eduardo em 2018. “Se você prende um ministro, acha que vai haver um protesto popular?”
Desinformação, ameaças e pedidos para dissolver o tribunal começaram a circular repentinamente nas redes sociais. O Supremo Tribunal Federal já havia reforçado suas medidas de segurança, comprando uma frota de veículos blindados e armas de gás lacrimogêneo, mas Toffoli queria fazer mais. Ele decidiu que o tribunal, e o país, precisavam de um escudo — uma investigação sobre “fake news” e retórica antidemocrática. E Moraes, que passou grande parte de sua carreira na aplicação da lei, deveria ser quem o usaria, explicou Toffoli posteriormente .
A abertura da investigação, que Toffoli chamou de a decisão mais difícil de sua gestão , marcou uma ruptura brusca com os precedentes. O tribunal tradicionalmente não tem autoridade para iniciar suas próprias investigações. E os casos são normalmente distribuídos por um sistema de loteria. Mas seus colegas juízes concordaram, por 10 votos a 1, que a investigação sigilosa era vital.
“Estávamos completamente desprotegidos; foi um momento extraordinário”, disse um alto funcionário do Judiciário. “Se o tribunal não tivesse um instrumento para se defender — se dependesse apenas da polícia ou do Ministério Público — estava frito.”
Mello foi a única voz dissidente: “Foi uma investigação que, na minha opinião, foi iniciada de forma errada”, disse ele ao The Post.
Ao iniciar o inquérito, Moraes dispunha de um conjunto diversificado de instrumentos. Ao contrário da Suprema Corte dos EUA, que apenas julga, a mais alta corte brasileira tem poderes para conduzir investigações e conta com a Polícia Federal à sua disposição. Moraes também poderia se valer de um arcabouço legislativo que define a liberdade de expressão de forma mais restrita do que nos Estados Unidos e oferece proteção legal ao Estado democrático.
“Entendo que, para uma cultura americana, seja mais difícil compreender a fragilidade da democracia porque nunca houve um golpe lá”, disse Moraes. “Mas o Brasil teve anos de ditadura sob o [presidente Getúlio] Vargas, outros 20 anos de ditadura militar e inúmeras tentativas de golpe. Quando você é muito mais atacado por uma doença, forma anticorpos mais fortes e busca uma vacina preventiva.”
Moraes não perdeu tempo. Em um mês, ordenou que um primeiro lote de contas de redes sociais fosse desativado. Em seguida, realizou uma operação abrangente contra dezenas dos apoiadores mais expressivos de Bolsonaro — blogueiros, influenciadores e políticos de direita —, a quem acusou de estarem por trás de ameaças ao tribunal e de desinformação que colocavam em risco a democracia. O próprio ministro da Educação do presidente foi apontado como alvo após ele ter instado a prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal. Moraes então ordenou a prisão de um deputado em exercício que havia defendido o regime repressivo da ditadura militar.
À medida que a investigação de Moraes se aprofundava, seu poder também aumentava. O sistema judiciário brasileiro frequentemente agrupa casos semelhantes sob a tutela de um único juiz, e Moraes logo se tornou responsável por praticamente todos os inquéritos sobre supostos ataques à ordem democrática por Bolsonaro e seus apoiadores. Posteriormente, ele ascendeu à presidência do Tribunal Superior Eleitoral, que funciona paralelamente ao Tribunal Federal e tem o poder de investigar irregularidades eleitorais e cassar políticos.
Embora muitos em Brasília defendessem seu papel, alguns começaram a se sentir desconfortáveis com a extensão de sua autoridade.
“A investigação deveria ter sido limitada em tempo e escopo”, disse um alto funcionário judicial. “Mas nunca terminou, e ninguém mais o questiona.”
Todo mundo no Brasil agora conhecia Alexandre de Moraes. Em breve, o mundo também conheceria seu nome.
Impulsionando a ambição
Nenhum dos amigos e colegas do juiz demonstrou surpresa com a forma como ele exerceu seu novo poder. Moraes era assim, disseram: inflexível, agressivo e dado a demonstrações de poder bruto.
Um ex-promotor de São Paulo, que deu a Moraes seu primeiro estágio como escrivão, disse que ele parecia motivado, quando jovem, a provar algo. Filho de um modesto empresário e professor, Moraes não tinha um sobrenome prestigiado como outros escrivães. Mas, aos 20 e poucos anos, disse o mentor, Moraes ficou em primeiro lugar em um concurso “muito, muito, muito difícil” para o Ministério Público, superando advogados mais experientes e com mais recursos.
“Ele tem uma capacidade de trabalho incrível”, disse o mentor. “Ele trabalha todo fim de semana.”
Sua carreira como promotor no Ministério Público Estadual parecia promissora. Em 1997, ele liderou uma investigação sobre um suposto esquema de propina envolvendo a compra de carne de frango a preços exorbitantes pela Prefeitura de São Paulo. O escândalo — conhecido como “chicken-gate” — dominou os noticiários. Mas Moraes tinha ambições maiores e, em 2002, deixou o ministério para assumir o cargo de Secretário de Justiça do Estado de São Paulo.
“Nós dois viemos da classe média; nunca fomos ricos”, disse um amigo de longa data. “E finalmente tínhamos conseguido alguma segurança financeira, então fiquei chocado que ele tivesse desistido disso por um cargo político que poderia acabar em poucos meses. Ele disse que tinha que arriscar.”
“Ele sempre quis estar na Suprema Corte”, acrescentou outro velho amigo.
Uma vez empossado, ele dedicou sua cruzada à defesa da instituição — e rapidamente foi arrastado para uma crescente disputa de ego e vontade com Bolsonaro. Em agosto de 2021, quando o presidente começou a atacar o sistema eleitoral brasileiro durante sua campanha pela reeleição contra o esquerdista Luiz Inácio Lula da Silva, Moraes nomeou Bolsonaro como alvo de investigação.
Após a derrota de Bolsonaro , milhares de seus apoiadores, convencidos de que a eleição havia sido fraudada, invadiram os prédios federais de Brasília em um motim que relembrou a invasão do Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021. Foi Moraes quem supervisionou os procedimentos que impediram Bolsonaro de exercer cargos públicos.
Ele então assumiu o comando da investigação que culminou, no ano passado, nas alegações de que Bolsonaro conspirou para manter o poder por meio da força militar e assassinar seus rivais políticos, incluindo Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o próprio Moraes. O juiz entrevistou testemunhas-chave e foi um dos ministros que sancionaram acusações criminais que poderiam condenar o ex-presidente à prisão por décadas.
Bolsonaro, que não concedeu nenhuma entrevista desde que entrou em prisão domiciliar, negou as acusações e diz ser vítima de perseguição política.
“Este é um processo legal”, rebateu Moraes. “Cento e setenta e nove testemunhas já foram ouvidas.”
À medida que suas investigações se multiplicavam e se expandiam, e a resistência online aumentava, Moraes enfrentou uma gama maior de oponentes. Primeiro veio Musk, que no ano passado se recusou a cumprir as ordens de Moraes de remover contas no X que, segundo o juiz, ameaçavam a ordem democrática brasileira. Em fevereiro, ele suspendeu o Rumble , uma plataforma popular entre conservadores que compartilha servidores com o Truth Social, após a plataforma resistir às ordens de remoção.
Os impasses elevaram a visibilidade global de Moraes — e chamaram a atenção de Trump. A empresa de mídia social do presidente processou Moraes no início deste ano em um tribunal federal na Flórida, acusando-o de suprimir os direitos de liberdade de expressão dos usuários nos Estados Unidos.
“Este homem está fora de controle”, disse Martin De Luca, o principal advogado do Rumble e da Trump Media no processo contra Moraes.
Questionado sobre se tinha poder demais, Moraes rejeitou a ideia. Ele disse que seus colegas do Supremo Tribunal Federal revisaram mais de 700 de suas decisões após recursos.
“Você sabe quantos eu perdi?”, perguntou ele. “Nenhum.”
‘A investigação continuará’
Aos olhos do governo americano, Moraes é um vilão global.
“Juiz e júri em uma caça às bruxas ilegal”, disse o secretário do Tesouro, Scott Bessent.
“O rosto mundial da censura judicial”, nas palavras do vice-secretário de Estado Christopher Landau.
A acrimônia não é mútua, disse Moraes. Na parede com painéis de madeira do lado de fora de seus aposentos, ele pendurou apenas três documentos: a Declaração de Independência. A Declaração de Direitos. O preâmbulo da Constituição dos EUA.
Moraes disse que sempre buscou inspiração na história da governança americana, discorrendo sobre as obras de John Jay, Thomas Jefferson e James Madison.
“Todo constitucionalista tem uma grande admiração pelos Estados Unidos”, disse o juiz.
Ele disse que o Brasil e os Estados Unidos eram amigos. O crescente abismo entre eles, acreditava ele, era temporário, motivado pela política e pelo tipo de desinformação que ele passou anos tentando abafar. Ele destacou Eduardo Bolsonaro. Com financiamento de seu pai, o deputado federal conduziu uma campanha diplomática desonesta, incitando hostilidades dos EUA contra o Brasil e sanções contra Moraes.
Eduardo, que chamou Moraes de “bandido de toga”, não respondeu a um pedido de comentário.
“Essas narrativas falsas acabaram envenenando o relacionamento — narrativas falsas sustentadas pela desinformação disseminada por essas pessoas nas redes sociais”, disse Moraes. “Então, o que precisamos fazer, e o que o Brasil está fazendo, é esclarecer as coisas.”
Moraes refletiu por um momento sobre a perda das liberdades individuais. Sua crescente lista de inimigos. As restrições de viagem.
“É agradável passar por isso?”, disse ele. “Claro que não é agradável.”
Mas o Brasil estava enfrentando forças poderosas que queriam destruir a democracia, disse Moraes, e era seu trabalho detê-las.
“Enquanto houver necessidade”, disse ele, “a investigação continuará”.
O que os leitores estão dizendo
Os comentários elogiam amplamente o Juiz Alexandre de Moraes por sua coragem e dedicação à preservação da democracia no Brasil, contrastando suas ações com as falhas percebidas do sistema judiciário americano sob a influência de Trump.
Muitos comentaristas expressam admiração por Moraes…
Terrence McCoy
Terrence McCoy é o chefe da redação do The Washington Post no Rio de Janeiro. Ele ganhou o Prêmio George Polk duas vezes e foi finalista do Prêmio Pulitzer em 2023.siga em X@terrence_mccoy
Marina Dias
Marina Dias é repórter do Washington Post no Brasil. Jornalista brasileira com 15 anos de experiência, trabalhou como correspondente nos EUA da Folha de S.Paulo, o maior jornal do Brasil, e colaborou com a revista New Yorker. Em 2020, foi finalista do Prêmio Gabo de Jornalismo por sua cobertura das eleições americanas.
