O liberalismo na sua hora mais amarga. Por Raimundo Rodrigues Pereira
Uma série em quatro capítulos, com um epílogo
O ESPANTALHO DO ILIBERALISMO
A revista semanal britânica The Economist foi criada na Inglaterra, em 1843, em Manchester, cidade símbolo da Revolução Industrial: nela, pela primeira vez, foram usadas máquinas a vapor para
mover teares mecânicos. O papel da revista, desde sempre, foi defender o liberalismo e os princípios do livre comércio. E seu estilo é, também, historicamente militante. Parece uma publicação de partido: ela tem posição e a expressa claramente. Começa com quatro ou cinco editoriais nos quais apresenta sua posição em relação aos principais fatos a serem apresentados na semana. E depois disso vem um briefing sobre o fato mais destacado – digamos assim, na linguagem jornalística, o artigo de capa da edição. No dia 4 de setembro, a Economist publicou, no seu primeiro editorial e no briefing, uma apaixonada defesa do liberalismo e uma estridente advertência sobre as ameaças representadas pela esquerda iliberal, que teria levado seu descosido conjunto de ideias radicais, dos campus universitários, para a vida política americana. E, logo a seguir, no dia 5, nosso mais antigo jornal liberal, O Estado de S. Paulo, fundado em janeiro de 1875, para combater a monarquia e a escravidão, deu curso à campanha. Publicou o editorial com destaque e com o mesmo título, traduzido, “A ameaça da esquerda iliberal”. E com uma apresentação na qual podem ser vistas referências ao problema brasileiro com o bolsonarismo e ao crescimento, na América do Norte, das chamadas correntes identitárias esquerdistas, no caso, feministas e antirracistas mais radicais: “Democracia sofre com populistas de direita, mas não subestime o perigo das políticas identitárias esquerdistas”
Na sua essência, diz a revista, a doutrina liberal descobriu que “o progresso humano vem dos debates e das reformas” e que “a melhor maneira de se navegar através dos contratempos desse mundo dividido é através de um compromisso universal com a dignidade de cada ser humano, com mercados livres e governos limitados”. E teria sido graças à aplicação desses princípios que, no mundo, “nos últimos 250 anos”, “o liberalismo clássico ajudou a promover um progresso sem paralelo”.
No momento, no entanto, essa doutrina formidável estaria sendo submetida a um duro teste, da mesma forma como teria acontecido a um século atrás, “quando os cânceres do bolchevismo e do fascismo começaram a comer a Europa liberal por dentro”. E, em nenhum lugar esse teste está sendo mais radical do que nos EUA onde o bloco liberal incluiria uma “esquerda iliberal”, “obcecada por uma visão estreita de como obter justiça para grupos identitários oprimidos”, como os de negros e mulheres. Essa corrente, diz a Economist, levou para a luta política táticas de “pureza ideológica” que lembram as ideias prevalecentes na Europa quando os reis governavam por supostos mandatos divinos. Na época, a igreja era encarregada de separar os puros dos infiéis, antes que o liberalismo clássico surgisse no final do século 18. Os liberais clássicos, diz a Economist, usam os debates para examinar os pros e contras das opções e definir prioridades numa sociedade pluralista. E usam as eleições para escolher o caminho a seguir. A esquerda iliberal, diz a revista, acredita que o mercado de ideias atual está tão viciado como os outros mercados capitalistas e o que se apresenta neles como argumento e evidência é, no fundo, mais uma manifestação do poder das elites. Por esse motivo, o campo de debate tem de ser inclinado contra os reacionários e privilegiados, o que significa restringir a liberdade de expressão dessas correntes com uma grande operação de justiça reparadora. Envolve tomar esses reacionários como exemplo negativo, afastando-os dos debates, negando-lhes espaços e palanques. Assim, conclui a revista, “a esquerda iliberal coloca seu próprio poder no centro das coisas, porque está convicta de que o progresso real só é possível depois de terem sido eliminadas hierarquias injustas, raciais, sexuais e outras. Os liberais clássicos também querem a eliminação dessas hierarquias. A diferença estaria, diz a Economist, no método: os liberais clássicos acreditam na disputa por meio da competição graças à fixação de condições iniciais justas como a eliminação dos monopólios corporativos e radicais reformas tributárias.
O problema atual, diz a revista, é que os governos liberais não fizeram nada disso. Depois do colapso da União Soviética suas elites tornaram-se arrogantes e perderam a humildade e a virtude da permanente dúvida características dos liberais. Eles manipularam a meritocracia americana a favor de seus pares. Ao invés de tratar sua elite operaria com dignidade, torceram o nariz para sua suposta falta de sofisticação.
Para agravar o problema, e em função do tratamento da questão racial na América, isso abriu espaço para os iliberais insistirem na avaliação de que o país está apodrecido desde sua origem. Os liberais clássicos argumentam que as mudanças exigem tempo. Mas, conclui a revista, “Washington está quebrada; a China dispara tempestuosamente à frente; e o povo americano está inquieto”.
CAPÍTULO 2.
AS VIRTUDES DO LIBERALISMO
O liberalismo é um dos produtos principais do chamado iluminismo, um movimento de ideias desenvolvido entre os séculos XVII e XVIII especialmente na França, Holanda e Inglaterra. Esses países viviam da economia agrária e comercial antiga. Seus produtos mais sofisticados vinham do trabalho de artesãos, como tecelões, ferreiros, carpinteiros, sapateiros em suas casas e com suas ferramentas. E a produção básica vinha do trabalho de camponeses que cultivavam as terras dos nobres, latifundiários articulados por um sistema político que tinha no topo reis consagrados pela igreja.
A novidade do movimento iluminista era a defesa das liberdades políticas e econômicas necessárias à burguesia, a classe dirigente do sistema econômico novo que surgia – o capitalismo, baseado no trabalho assalariado na indústria mecanizada das fábricas.
Uma dúzia de grandes pensadores podem ser citados como autores de obras que até hoje são usadas nas escolas para ilustrar as ideias formuladas nesse período. Destacamos quatro deles. Primeiro, dois ingleses, Adam Smith e John Stuart Mill.
Smith, 1723-1790, é o autor de “Uma investigação sobre a Natureza e a Causa da Riqueza das Nações, obra depois popularizada como a da “mão invisível do mercado”, segundo a qual é o movimento de cada indivíduo em busca de seus interesses pessoais que promove o crescimento econômico e a inovação. E para Smith, “a ciência era o grande antídoto contra o veneno do entusiasmo e da superstição”.
Mill (1806-1873), economista e filósofo inglês, é o autor de Sobre a Liberdade, Sobre a Sujeição das Mulheres e Princípios de Economia. Era um pensador revolucionário. Dizia por exemplo: “Quem pode calcular o que se perde com a multidão de inteligências que coexistem com caracteres tímidos, que não se aventuram a incorporar-se em nenhuma corrente de opinião arrojada, vigorosa e independente, com o temor de que ela o leve a alguma coisa que possa ser taxada de irreligiosa ou imoral?”.
A seguir, destacamos um francês, Alexis de Tocqueville (1805-1859), e um suíço que viveu na França, Benjamin Constant (1767-1830). Tocqueville era de família nobre, tinha 15 anos em 1789, quando a Revolução Francesa eclodiu e viveu nos diversos períodos desse vasto movimento que se estendeu por mais de meio século. Sua grande obra é Da Democracia na América escrito a partir de sua viagem pelos Estados Unidos onde esteve entre 1831 e 1832 e onde viu o que lhe pareceu um exemplo para o mundo. Tocqueville era crítico das diversas formas de socialismo que começavam a ser propostas na época. Dizia que elas tinham em comum com o liberalismo, a defesa da igualdade. Mas, acrescentava, com uma diferença: os liberais a pretendiam a partir da liberdade; e os socialistas, a partir da escravidão. Como a maioria dos liberais de seu tempo, Tocqueville não quis ver que a grande nação americana estava sendo construída com a destruição das sociedades dos antigos moradores da terra, os indígenas, e pelo trabalho de negros trazidos da África como escravos.
Benjamin Constant, por sua vez, percebeu essas grandes diferenças e, nos seus escritos, com base nas observações de sua época e nos estudos das antigas sociedades grega e romana consideradas democráticas, definiu dois tipos de liberdade, a “dos antigos” e a “dos modernos”. A liberdade dos antigos era participativa, republicana, dizia ele, dava aos cidadãos o direito de influenciar diretamente as políticas através de debates e do voto de cada um em assembleias públicas. A cidadania era assim uma obrigação moral que exigia investimento de tempo e energia. Isso, de forma geral, nos tempos antigos, implicava na existência de sub-sociedades de trabalhadores, no caso, de escravos, que deixavam os cidadãos livres. para tratar das questões públicas. A Liberdade dos Antigos, dessa forma, era limitada a elites relativamente pequenas e homogêneas.
Benjamin Constant viveu na França revolucionária e era admirador da Inglaterra revolucionária. Não se pode dizer que os dois países eram o exemplo de nações que resolveram seus principais impasses da forma liberal apresentada no editorial do Economist já citado – ou seja, pacífica, pela discussão, o debate e o voto. É de seu tempo, 21 de janeiro de 1793, a decapitação em praça pública, pela guilhotina, em Paris, do rei Luiz XVI. No período conhecido como do Terror, que vai de daquele marco até 1794, os historiadores estimam que foram mortos cerca de 30 mil franceses.
Pode-se dizer que os defensores do liberalismo inglês, de certo modo, precederam os defensores do liberalismo francês nessa prática: o rei da Inglaterra, Carlos 1, foi decapitado em 1649 após uma guerra civil, a chamada Revolução Gloriosa que afirmou os poderes do parlamento e acabou dando origem à monarquia constitucional que sobrevive até hoje. Existe um rei, que representa o país, mas o governo é tocado por um parlamento no qual os representantes dos partidos – hoje são três, o Conservador, o Trabalhista e o Liberal – em eleições gerais, disputam o poder de formar o governo e ocupar os diversos ministérios.
CAPÍTULO 3.
MISTURANDO ALHOS COM BUGALHOS
Na defesa do liberalismo, a Economist comete erro grosseiro: põe socialistas e comunistas, neofascistas e neonazistas num mesmo balaio
A revista britânica diz que cem anos atrás o liberalismo europeu foi atacado por dois cânceres, o nazifascismo e o bolchevismo. É uma avaliação que despreza fatos básicos da história. A Segunda Guerra Mundial, o grande evento de cem anos atrás citado, começa com três grandes manobras. Pela ordem:
1. O líder da Alemanha nazista Adolf Hitler exige uma parte do território da Tchecoslováquia, numa reunião em 20 de novembro de 1938. O acerto, conhecido na história como o Pacto de Munique, cidade alemã na qual foi assinado, se dá entre os governos liberais da França e da Inglaterra de um lado e, de outro, o governo nazista alemão de Adolf Hitler e o governo fascista da Itália de Benito Mussolini. Não tem a concordância do governo checo nem de seus aliados, os comunistas russos, então no governo de Moscou, e cuja presença fora vetada por Hitler. E tem o apoio, nos bastidores, do governo americano de Theodore Roosevelt.
2 – A posição de neutralidade dos liberais diante da entrega de parte da Tchecoslováquia aos nazistas foi vista pelos comunistas como uma manobra para desviar a sanha de Hitler contra eles, contra a Rússia. O governo de Moscou negociou então um pacto com os alemães, assinado menos de um ano depois, em 23 agosto de 1939, que ficou conhecido como o Pacto Ribentrop-Molotov, em referência aos nomes dos ministros de relações exteriores alemão e russo e cujo conteúdo prático viria a se materializar dramaticamente logo mais.
3 – A 1 de setembro a Alemanha invade a Polônia. No dia seguinte, a França e a Inglaterra declaram guerra à Alemanha. Duas semanas depois, a 14 de setembro, o exército russo ocupa cerca de metade do território polonês, numa ação prevista no pacto com os alemães para delimitar sua área de defesa.
A II Guerra Mundial estava deflagrada. Após ocuparem a metade da Polônia nas suas vizinhanças, as poderosas divisões blindadas alemãs se voltam para o oeste. Ocupam a Holanda, cujo exército se rende a 15 de maio; depois a Bélgica, que se rende cinco dias depois. Encurralam a seguir cerca de 350 mil soldados franceses, ingleses e canadenses entre a cidade belga de Dunquerque e o canal da Mancha, braço de mar que separa a Inglaterra do continente.
Hitler não parte para esmagar esses adversários, como alguns historiadores acham que era possível. Reorienta o esforço de suas tropas para a tomada da França o que faz sem grande resistência. Entra em Paris a 14 de junho. E assina um armistício de não agressão com um governo francês comandado pelo marechal Pétain. Isso leva democratas e patriotas em geral a atacar o acordo e fortalecer a resistência ao nazifascismo. O general Charles de Gaulle, por exemplo, que se tornaria presidente dos franceses em 1959, vai para Londres e dali iria, pouco depois, para o norte da África comandar tropas aliadas em operações contra a ocupação alemã da Europa.
Mas, a grande derrota de Hitler viria de sua ofensiva contra a Rússia. Os nazistas tinham ocupado a França e obtido o governo de conciliação em Paris em menos de um mês. Hitler planeja então repetir o feito com um ataque direto a Moscou. Seus exércitos chegam às proximidades da cidade em outubro de 1941. Mas saem derrotados depois de quatro meses de terríveis combates. Hitler muda então de objetivo: busca uma vitória sobre os russos em Stalingrado, mais ao sul do país, tida como estratégica e em área de recursos naturais considerados importantes.
Suas forças cercam a cidade em julho de 1942. Mas a resistência ao ataque é extraordinária e passa a ser acompanhada no dia a dia pelos antifascistas do mundo inteiro que a cantam em prosa e verso. O poeta chileno Pablo Neruda compõe “Canto de Amor a Stalingrado”, traduzido no Brasil por Carlos Drummond de Andrade.
Os alemães deixam a região derrotados oito meses depois, em fevereiro de 1943. E o Exército Vermelho como que sai no encalço dos invasores, em direção a Berlim. Os americanos decidem, então, participar da operação de desembarque na Normandia, que teve início em 6 de junho de 1944 (desde o ano anterior as forças americanas já atuavam na Itália com outras forças aliadas; e desde dezembro de 1941 estavam em guerra contra o Japão após o ataque dos japoneses a Pearl Harbor) A 6 de junho, então, os americanos desembarcam no nordeste da França 55 mil soldados. E com mais um reforço de ingleses e canadenses partem também para Berlim.
O exército vermelho chega primeiro. Ocupa Berlin a 22 de abril de 1945. Uma semana depois, a 30 de abril, Hitler se suicida. E a 7 de maio, a Alemanha se rende incondicionalmente.
CAPÍTULO 4.
AS ARMAS DOS LIBERAIS E AS DOS SOCIALISTAS
A Segunda Guerra Mundial termina na Europa com a rendição alemã, mas continua na Ásia – onde adquirira características próprias e dimensões gigantescas. Num episódio anterior, o Japão invadira a China em 1937. Os americanos tinham apoiado os chineses. Em 1941 cortaram exportações de petróleo e aço para o Japão. Em represália, os japoneses atacam e destroem parte da frota americana do Pacífico estacionada em Pearl Harbour. Os americanos declaram então guerra ao Japão e aumentam sua ajuda aos chineses. È bom também lembrar igualmente que os EUA começaram a a fornecer armas e munições à URSS em 4 de dezembro de 1941, antes de entrarem oficialmente na guerra. Outro ponto que merece destaque: a URSS fez um acordo de não agressão com o Japão a 13 de abril de 1941, dois anos após conflitos entre suas forças e as dos japoneses na fronteira entre um Estado fantoche japonês conhecido como Manchuco e a Mongólia, pro-soviética.
A China fora a grande nação do mundo antigo. Enquanto o estado nacional dos americanos se consolida com a tomada de cerca da metade do atual México em 1848, o dos chineses, com seu território atual, incluindo o Tibet e Xinjiang, a província mais a oeste, é de 1750. Antes da revolução Industrial inglesa, com seus teares mecânicos, a China com suas sedas produzidas em teares manuais, era a grande nação exportadora e a maior economia do mundo.
E não foi passada para trás pela Inglaterra ao estilo liberal, digamos, porque seus produtos teriam sido preteridos pelos dos ingleses, na disputa de preços no mercado. Mas porque foi derrotada em quatro guerras de cunho imperialista – as duas chamadas Guerras do Ópio, a de meados do século 19, após as quais foi obrigada a ceder Hong Kong à Inglaterra por duzentos anos; e a duas invasões japonesas, no século 20, após as quais perdeu a influência que tinha na Coréia e cedeu Taiwan e ilhas adjacentes à soberania do Japão.
No início de agosto de 1945, a guerra contra o Japão termina de maneira assombrosa: Hitler estava morto; os alemães tinham se rendido; o exército vermelho ocupava Berlin. E os americanos cometem o maior atentado terrorista da história: ainda no início do mês, lançam duas bombas atômicas em cidades japonesas, uma no dia 6, sobre Hiroshima, outra no dia 9, sobre Nagasaki, com as quais matam, no ato, entre 150 mil a 250 mil pessoas e, estima-se mais outro tanto depois em função dos males da exposição à radiação nuclear. E, no dia 16, o Japão se rende.
A bomba tinha sido criada por um pequeno exército de cientistas e técnicos de vários países, chefiados pelo físico americano Robert Oppenheimer após carta de Albert Einstein ao presidente americano alertando para a possibilidade de criação e da necessidade de produzir a arma atômica antes que os alemães a fizessem. A equipe de Oppenheimer trabalhou em sigilo num laboratório em Los Álamos escondido na região montanhosa perto de Albuquerque, capital do estado americano do Novo México. A bomba foi testada em Álamo Gordo, um deserto da região, no dia 16 de julho. Os cientistas do grupo de Oppenheimer lhe pediram então para encaminhar ao presidente americano a proposta de usá-la numa exposição em uma ilha isolada para observadores entre os quais estivessem representantes dos japoneses. O então presidente, Harry Truman, disse que a decisão não estava mais nas mãos deles, mas com os chefes militares.
Oppenheimer era um liberal, de família rica, financiara organizações antifascistas, tinha amigos comunistas. Foi afastado do programa nuclear americano. E, no museu nacional da energia nuclear em Albuquerque, hoje, a referência a ele é minúscula e não elogiosa.
No caso da guerra na Ásia um elogio da postura liberal é totalmente descabido. A recuperação da soberania da China começa com a intervenção de militares republicanos e nacionalistas que fundam, em 1911, o Kuomitang, Partido Nacionalista da China, e proclamam a República em 1912. Pouco depois passa a ter papel central na vida da China o PCCh, partido comunista chinês, fundado em 1921. Com a invasão do Japão de 1937 nacionalistas e comunistas se unem em defesa da soberania do país. E, com a derrota do Japão, em 1945, os nacionalistas se unem às forças americanas contra os comunistas e são derrotados na guerra civil que termina em 1949, com a vitória dos comunistas liderados por Mao Zedong, que proclamam a República Popular da China, no continente, com sede em Pequim, e a internação dos nacionalistas na ilha de Taiwan, sob a proteção dos americanos.
Os chineses são, também, os responsáveis pela renovação do movimento comunista após a crise ideológica decorrente das denúncias de Nikita Kruschev. Ele tinha sido o mensageiro de Stalin para o comando político dos chefes militares em Stalingrado. E, após a morte de Stalin em 1953, torna-se primeiro-ministro e denuncia seu ex-chefe como responsável por um regime de terror.
Os chineses seguem outro caminho. Denunciam Krushev publicamente abrindo uma cisão no movimento comunista internacional. E passam a realizar grandes operações internas em defesa do caminho socialista. Duas dessas operações conduzidas por Mao: a de 1956-1965, conhecida como “O grande salto à frente” e a de 1966-1976, a da “Revolução Cultural”. Com a primeira, a China criou as comunas rurais, estatizou toda a terra e estabeleceu sistemas de produção e distribuição mais coletivos para o trabalho camponês, espalhou estatais por todo interior e transformou praticamente toda a propriedade industrial chinesa em empresas estatais e de propriedade coletiva. Com a revolução no campo da cultura Mao procurava manter a pureza do partido diante da degradação que teria sido observada no partido soviético. Dois anos depois da morte de Mao, em setembro de 1976, então sob o comando de Deng Xiaoping, o PCCh iniciava uma profunda correção de rumo. O Grande Salto passou a ser tido com 50% de erros e 50% de acertos; e a Revolução Cultural, basicamente um desastre. Deng comanda o partido noutra direção até sua morte em 1997. A tese de que a “luta de classes” seria a chave para a política é trocada pelas das “reformas para liberar o desenvolvimento das forças produtivas”, para utilizar os mecanismos de mercado, despertar a iniciativa individual, abrir o país para o exterior em busca de tecnologia moderna e implantar nas empresas estatais mecanismos de gestão considerados científicos. Os contratos com a remuneração vinculada à produção assinados com as famílias camponesas rapidamente se estenderam por toda a China. No final de 1984, 180 milhões de domicílios rurais – 98% do total – tinham adotado o sistema.
Mudou-se também a posição em relação à empresa privada. Em 1983 a posição do partido em relação à empresa capitalista industrial era a dos três nãos: 1) não defender; 2) não fazer propaganda; 3) não eliminar a possibilidade apressadamente. Em 1987, o partido e o governo passaram a incentivá-las moderadamente. Nesse ano, uma Emenda à Constituição permitiu o desenvolvimento das empresas privadas como “um complemento” da economia socialista pública. Ainda em 1989, o partido publicou documento que dizia: “Proprietários de empresas privadas não podem ser membros do Partido Comunista”. Dois anos depois, no entanto, outro documento corrigia, dizendo: “os proprietários de empresas privadas não podem ser igualados ou tidos como análogos aos industriais e comerciantes do passado de uma maneira super simplificada”. E em agosto de 2001 empresários foram admitidos no partido. Os resultados dessa liberação de iniciativas foram espetaculares. Em 1978, a China tinha 348 mil empresas industriais, excluindo as empresas dirigidas pelas vilas e as oficinas individuais. No final de 1995, o número total de empresas industriais tinha chegado a 7,26 milhões. Do total de novas empresas criadas, a grande maioria eram pequenas e médias, de empresários privados, nas pequenas cidades e vilas rurais. Cerca de 100 milhões de pessoas que deixaram o trabalho agrícola nesse período acharam emprego nessas novas empresas, espalhadas pelo interior. E tudo isso se fez sem que o sistema básico de poder na China fosse desmontado. De acordo com algumas estatísticas divulgadas na Duma, o congresso russo, a terapia de choque que desmantelou o sistema socialista soviético a partir de 1989 fez com que 10% da população russa se transformasse, por meios legais e ilegais, numa nova elite; 60% tiveram uma grande deterioração no seu padrão de vida e 30% foram lançados na miséria extrema. Estima-se que o total das perdas do país com esse tratamento foram equivalentes a 2,5 vezes os danos causados na Rússia pela Segunda Guerra Mundial.
O LIBERALISMO NA SUA HORA MAIS AMARGA
Epílogo:
NO BRASIL – E NÃO APENAS AQUI, COMO SE SABE – SENHORES DE ESCRAVOS SE CONSIDERAVAM LIBERAIS
O Brasil é um país de “ideias fora do lugar” como lembra bem em sua obra clássica o crítico Roberto Schwarz ao falar da aceitação da doutrina liberal por nossos senhores de escravos. Nesse sentido não é muito diferente dos americanos: em 32 dos seus primeiros 36 anos de vida os americanos que ocuparam o cargo de presidente foram proprietários de escravos na Virgínia. Tanto a colônia como o Estado nacional, fundados sobre a escravidão, são os fornecedores dos seus estadistas mais ilustres; só para lembrar, George Washington, grande chefe militar e político da revolta contra a Inglaterra; James Madison e Thomas Jefferson autores, respectivamente, da Declaração de Independência e da Constituição Federal em 1787, os três são proprietários de escravos”. Sobre os nossos liberais, parte dos inconfidentes, assim como os chefes americanos citados, eram proprietários de escravos, inclusive o herói nacional Tiradentes.
Os americanos, como mostra Domenico Losurdo, no livro Contra-História do Liberalismo, levaram quase um século após a independência para abolir a escravidão, por meio de uma guerra civil, na qual os “liberais sulistas” taxavam Lincoln de ditador, e outro meio século para acabar com os resquícios legais da discriminação racista, graças ao movimento dos direitos civis, da década de 1960.
Algo semelhante se poderia dizer de muitos de nossos liberais de hoje que assistiram a fúria repressiva sem controle da Operação Lava Jato e ficaram satisfeitos com a prisão de Lula que o afastou do pleito. Muitos deles, hoje, se arrependeram, alguns publicamente, de não terem votado em Fernando Haddad no segundo turno das eleições quando estava evidente que isso poderia contribuir para a eleição do protofascista Jair Bolsonaro.
Uma nova eleição se aproxima. É tempo de nossos liberais acertarem a cabeça para ajudar o Brasil a acertar o passo.
- Com colaboração de Armando Sartori
Raimundo Rodrigues Pereira
Nascido em Exu, Pernambuco, a 19 de setembro de 1940, é formado em Física pela USP e Jornalista profissional desde 1965; foi editor nas revistas Veja e Realidade, da Editora Abril, foi editor-chefe dos semanários Opinião e Movimento de resistência ao regime militar e, mais recentemente, diretor da Editora Manifesto.
Artigo publicado em https://www.brasil247.com/blog/o-liberalismo-na-sua-hora-mais-amarga