O mito da continuidade da política econômica por Rafael Dubeux *
intensificou-se na imprensa a tese segundo a qual o governo Lula teve êxito
econômico graças à manutenção intocada da política herdada de FHC.
Mais
preocupado com a disputa eleitoral do que com a análise isenta, o objetivo
desse argumento é conferir todo o mérito e indiscutível prestígio do Presidente
Lula ao governo de Fernando Henrique – que hoje não consegue se eleger sequer
para síndico de condomínio.
Segundo o argumento, a partir da
assinatura da Carta ao Povo Brasileiro,
ainda na campanha de 2002, Lula teria se convertido à luz da sabedoria
econômica fernandista. Quando assumiu o governo, em janeiro de 2003, garantiu
seu sucesso ao preservar o "tripé" da política econômica, consistente em câmbio
flutuante, metas de inflação e superávit primário.
Acontece que nem a Carta
representou uma aceitação da política econômica de FHC, nem é fato que a
manutenção do tal "tripé" signifique a continuidade da política econômica
anterior.
Quanto à Carta, de fato ela
afastou propostas mais extremas que, noutras circunstâncias, haviam sido
defendidas pela esquerda brasileira, como a moratória da dívida. Mas é
inteiramente falso afirmar que ela representou a aceitação da política
econômica então vigente. É mais um mito. Convém relembrar trechos da Carta:
O Brasil quer mudar. Mudar para
crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico
que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. […]
O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo,
seja ele assumido ou mascarado. Quer trilhar o caminho da redução de nossa
vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um
amplo mercado interno de consumo de massas. Quer abrir o caminho de combinar o
incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes e
criativas. O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e
modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais
competitivo no mercado internacional. […]
O PT e seus parceiros têm plena consciência de que a superação do atual modelo,
reclamada enfaticamente pela sociedade, não se fará num passe de mágica, de um
dia para o outro. Não há milagres na vida de um povo e de um país. […] Será
necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo
que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos
não será compensado em oito dias. […]
Nossa política externa deve ser reorientada para esse imenso desafio de
promover nossos interesses comerciais e remover graves obstáculos impostos
pelos países mais ricos às nações em desenvolvimento. […]
Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma
sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento
público tão importante para alavancar o crescimento econômico. […] Queremos
equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos
credores. Mas é preciso insistir: só a volta do crescimento pode levar o país a
contar com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro. […]
Há outro caminho possível. É o caminho do crescimento econômico com
estabilidade e responsabilidade social. As mudanças que forem necessárias serão
feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais.
Difícil inferir desses trechos
que o candidato Lula se comprometeu com o continuísmo. A Carta, portanto, não
representou submissão ao modelo anterior. Mas será que, a despeito da Carta, o
governo manteve a política econômica? Vale notar que a crítica central da
esquerda ao governo anterior poderia ser assim resumida: 1) a excessiva
vulnerabilidade externa do país (sintetizada no enorme déficit em transações
correntes); e 2) a péssima distribuição da renda. Como alternativa, propunha-se
reduzir a vulnerabilidade e criar um grande mercado interno de massas. Essa
interpretação petista ("os desenvolvimentistas") se contrapunha ao grupo de
economistas do então governo ("os monetaristas") que advogavam que o grande
problema macroeconômico do Brasil era fiscal, e não a vulnerabilidade externa.
Falar, portanto, em tripé da
política econômica só serve para confundir o debate. Há muito mais entre o céu
e a terra da política econômica do que apenas meta de inflação, câmbio
flutuante e superávit primário. Aliás, mesmo esses três pequenos itens
comportam temperamentos. As metas podem ter bandas mais amplas e seu centro
pode ser mais elevado. A flutuação do câmbio não é limpa: intervenções são
constantes em todos os países – tal qual no atual governo mediante, entre
outros, a criação do fundo soberano, a instituição de IOF em investimentos
estrangeiros e a compra intensa de reservas. E, por fim, o superávit é medida
importante em períodos de crescimento, mas deve ser evitado como medida
contracíclica por ocasião das crises, como praticado em 2009 para mitigar os
efeitos da crise internacional – sob outro governo, o Brasil teria aumentado o
superávit e elevado os juros.
Mas, como já apontei, há vários
outros aspectos da política econômica para além do "tripé". Podemos falar de
crédito, poupança, tributação, comércio exterior, transferências públicas,
entre outros.
Impossível, por exemplo, ignorar
a mudança radical na política creditícia, mediante microcrédito, PRONAF,
crédito consignado e aumento do papel dos bancos públicos (o BNDES emprestou
137 bi em 2009, contra cerca de 41 bi em 2002; a CAIXA aplicou 47 bi em
financiamento imobiliário, contra cerca de 5 bi em 2002).
É preciso lembrar também a
contribuição indispensável da política de comércio exterior, que auxiliou o
país a passar de cerca de US$ 60 bi em exportações para US$ 197 bi em 2008 (em
2009, por conta da crise, caiu para "apenas" 160 bi), diversificando mercados.
Isso permitiu ao país adquirir reservas vultosas, passando dos ridículos US$ 16
bi em 2002 para os atuais US$ 240 bi, mesmo com crise. O Brasil ainda ousou
taxar os investimentos estrangeiros por meio do IOF, medida impensável pela
cartilha anterior. Some-se ainda que, por essas medidas, o Brasil deixou de
ouvir as lições e ordens tão temidas do FMI e se tornou credor internacional e
também do próprio FMI. Isso seria simplesmente inacreditável em 2002. Nem o
mais otimista dos petistas imaginava que o governo se encerraria com tamanho
sucesso econômico.
Não custa lembrar que, em 2002,
parecia impossível imaginar o Brasil credor internacional e sem receio dos
humores diários e instáveis dos investidores internacionais. Notícias diárias
sobre risco-país não têm mais relevância hoje. O tal "dever de casa" (quanto se
abusou dessa expressão!) a que o Brasil estaria obrigado para atrair
investimentos está absolutamente fora da pauta. Foi outro o dever foi
realizado: superamos a vulnerabilidade externa e distribuímos um pouco a renda.
Não há como ignorar também o
papel dos instrumentos de distribuição de renda, a exemplo do Bolsa-Família, do
aumento real do salário-mínimo, da desoneração da cesta básica e de
investimentos estruturais em áreas desfavorecidas do país (o Nordeste cresce hoje
a ritmo chinês).
O resultado dessas e de outras
medidas foram, conforme prometido na Carta, a formação do grande mercado
interno de massas (foi o consumo crescente da nova classe média que evitou que
afundássemos na crise internacional) e a redução drástica da vulnerabilidade
externa (a atual taxa do câmbio traz alguma preocupação, mas nem de longe
comparável à era FHC).
É fato que, também conforme
disposto na Carta, a mudança não seria feita do dia para a noite. Lula alertara
que não daria "cavalo-de-pau em transatlântico". As mudanças foram cautelosas e
eficazes, como se impõe a um país com a complexidade do Brasil. Os resultados
estão à mostra: no ano da maior crise internacional das últimas décadas, 2009,
o Brasil gerou em um só ano mais empregos formais (995 mil) do que nos oito
anos somados de FHC.
Mesmo o retorno recente de
pequeno déficit em transações correntes não pode ser equiparado à situação
fernandina. Na ocasião, o déficit era objetivo deliberado do governo – hoje não
é mais. Na ocasião, o Brasil não tinha reservas em quantidade suficiente e se
via espremido por uma dívida externa monumental – hoje não mais. Portanto,
embora o déficit atual mereça atenção, ele não pode ser minimamente comparado
ao que já passamos por decisões equivocadas de política econômica.
Depois de indicadas as mudanças,
é necessário por último rechaçar outro mito: o governo FHC não teria adotado
essas medidas porque não teria tido tempo hábil entre o controle da inflação
(1994) e o fim do segundo mandato (2002). É falso. O déficit em transações
correntes era almejado pelo governo de então, e não um obstáculo que se tentava
superar. Argumentava-se que o déficit seria positivo, pois acarretaria o
ingresso de poupança externa, compensando a insuficiência da nacional. Apesar das
lições históricas, não são poucos os adversários do atual governo que repetem
esse argumento disparatado ainda hoje. Alegava-se também que a compra de
reservas cambiais em grandes quantidades teria sido um erro do Governo Lula em
razão de seu custo fiscal, já que a remuneração das reservas é inferior à dos
títulos públicos. (Os críticos das reservas, curiosamente, sumiram depois de
setembro de 2008, quando a crise internacional irrompeu. Eram tão atuantes até
esse mês…)
Quanto às políticas sociais, com maior
razão não cabe falar de momento econômico. Era só implantá-las. Não só não as
implantaram, como resistiram a sua concretização no governo Lula sob o
argumento, de novo, do custo fiscal. Não foi questão de tempo, mas de escolha
política. Foram as medidas deste governo que nos protegeram da crise: reservas
vastas, desnecessidade de capital externo, bancos públicos atuantes e mercado
interno amplo.
Ignorar todos esses fatos e
insistir em que o governo Lula é continuidade do de FHC revela total incompreensão
de aspectos elementares de política econômica. Ou será que a compreensão
existe, mas o interesse político em desqualificar o atual governo e ajudar o
candidato tucano justifica o argumento? De minha parte, tenho calafrios ao
imaginar como estaríamos hoje se houvéssemos mantido a política
anterior.
* Rafael Dubeux, bacharel
em Direito pela UFPE e mestre em Relações Internacionais pela UnB, é Advogado
da União e Chefe Substituto da Assessoria Jurídica da Controladoria-Geral da
União. (Este artigo foi publicado inicialmente no site do Instituto Alvorada, em fev/10, e reproduzido no
Amálgama com autorização do autor.)
http://www.amalgama.blog.br/10/2010/o-mito-da-continuidade-da-politica-economica/